A luz do crepúsculo
foi desaparecendo aos poucos. A mãe deixou o grupo e entrou na casa,
de onde os homens não tardaram a ouvir o bater das tampas de ferro
do fogão. Um instante depois, ela estava de volta à reunião em que
todos pareciam meditar.
O avô disse:
— A coisa tem
dois lados pra se ver. Antigamente, o pessoal dizia que um pregador
dá azar.
Tom falou:
— Mas ele diz que
não é mais um pregador.
O avô agitou as
mãos:
— Quem uma vez
foi um pregador será sempre um pregador. Disso ocês podem ficar
certos. Mas, também, muita gente dizia antigamente que era bom ter
um pregador sempre na companhia. Quando alguém morre, ele pode
servir bem no enterro. Quando alguém casa, lá está o pregador.
Quando nasce uma criança, é o pregador que batiza ela. Eu sempre
disse que tem pregadores e pregadores. É só a gente saber escolher
o que presta. E este aqui, até eu gosto dele. Não é nada burro.
O pai enfiou o
graveto que tinha na mão debaixo de um montículo de poeira e ficou
a girá-lo entre os dedos, abrindo um pequeno túnel.
— Mas não se
trata de saber somente se ele traz sorte ou azar — falou
lentamente. — A gente precisa fazer os cálculo. É o diabo quando
a gente precisa fazer cálculo assim apertados. Mas vamo ver. Estão
aí a avó e o avô, são duas pessoas. E eu, o John e a mãe... são
cinco. E Noah e Tommy e Al, são oito. E Rosa e Connie, são dez. E
Ruthie e Winfield, são doze. E também a gente tem que carregar os
cães, senão que é que a gente ia fazer com eles? Não se pode dar
um tiro num bom cachorro, e por aqui não tem ninguém pra dar eles.
Então, são catorze ao todo.
— Não contando
com as galinhas e os dois porcos — disse Noah.
O pai disse:
— Acho melhor a
gente salgar os dois porcos na viagem. Vamo precisar de carne. E
assim a gente só tem que levar as barricas de carne salgada. Mas a
questão é saber se nós todos cabemo no caminhão, nós e o
pregador também. E se podemo dar comida pra mais uma pessoa. — Sem
virar a cabeça, perguntou: — Será que podemos, mãe?
A mãe aspirou
profundamente:
— A questão não
é saber se podemos; a questão é saber se queremos — disse com
firmeza. — Quanto a poder, acho que não podemos nem ir pra
Califórnia ou pra outro lugar qualquer; mas quanto a querer,
a gente querendo faz o que pode. Por falar nisso, a gente viveu aqui
muitos anos e nunca ninguém disse que um Joad ou um Hazlett recusou
comida, teto ou transporte para alguém que tava necessitado. Tinha
alguns maus mesmo, mas tão maus assim não.
O pai
interrompeu-a:
— Mas se não
tiver lugar pra ele? — Virara a cabeça para encará-la, e estava
envergonhado com o tom usado pela mulher. — Se a gente não caber,
todos, no caminhão?
— Nem agora tem
lugar bastante, com ele ou sem ele — replicou ela. — O caminhão
só dá bem pra seis pessoas, e são doze, pelo menos, que têm de
viajar de qualquer maneira. Uma pessoa a mais não faz diferença, e
um homem forte e saudável nunca é demais. De qualquer maneira, a
gente, com dois porcos e mais de cem dólares, ficar pensando se pode
sustentar mais uma pessoa... — Ela interrompeu-se e o pai
sentou-se, abatido com aquela lição. Tinha sido vencido.
A avó disse:
— É uma boa
coisa a gente ter um pregador na companhia. Ele disse uma bonita
prece pra gente, hoje de manhã.
O pai olhou o rosto
de cada um dos presentes, à espera de novos protestos, e depois
falou:
— Traz ele pra
cá, Tommy. Se ele vai com a gente, é bom que teja aqui.
Tom levantou-se e
foi andando em direção à casa.
— Casy! Ô, Casy!
— gritou.
Uma voz abafada
respondeu, vinda dos fundos da casa. Tom foi até o canto da
construção e viu o pregador sentado, encostado à parede, mirando
as estrelas que brilhavam no céu sem nuvens.
— Me chamou? —
perguntou Casy.
— Sim. Já que o
senhor vem com a gente, é melhor ficar conosco, ajudar a combinar a
viagem.
Casy ergueu-se. Ele
conhecia os regulamentos de família e sabia que tinha sido admitido
nesta, e com uma posição elevada, pois que tio John estava se
afastando para o lado, a fim de dar-lhe lugar no conselho, entre a
sua pessoa e a do pai de Tom. Casy também se acocorou com os outros,
de frente para o avô, que estava entronizado no estribo do caminhão.
A mãe tornou a
entrar na casa. Ouviu-se o riscar de um fósforo e logo a luz
amarela, fraca, de uma lamparina iluminou a cozinha escura. Quando
ela ergueu a tampa do panelão, o odor estimulante de carne cozida
com legumes infiltrou-se no grupo, através da porta aberta. Eles
esperaram até que a mãe regressasse ao quintal cada vez mais
escuro, pois que mãe tinha posição de destaque na reunião.
O pai continuou:
— Precisamos
combinar o dia da partida. Quanto mais cedo, melhor. O que a gente
tem que fazer antes é matar e salgar os porcos e embrulhar as nossas
coisas. E precisamos andar depressa.
Noah interveio:
— Se a gente se
apressar, pode terminar tudo amanhã mesmo e partir depois de amanhã.
Tio John discordou:
— Não dá pra se
esfriar a carne em um dia. Agora não é época de matança. E a
carne vai estragar, se não esfriar direito.
— Bom, então
vamo matar os porco esta noite mesmo. Já haverá mais tempo para a
carne esfriar. Vamo comer e começar logo. Tem sal bastante?
— Tem, sim. E
temos também duas boas barricas.
— Bem, então é
só começar — disse Tom.
O avô procurou se
agarrar a qualquer coisa que o ajudasse a descer do estribo.
— Tá ficando
escuro — disse. — E eu tô com fome. Quando a gente chegar na
Califórnia, vou ter o tempo todo cachos de uva nas mãos, pra comer
quando quiser, sim senhor. — Levantou-se, afinal, e os homens o
imitaram. Ruthie e Winfield, como dois endiabrados, saltitavam
alegres na poeira. Ruthie sussurrou numa voz rouca:
— Matar porcos e
viajar pra Califórnia. Matar porcos e viajar pra Califórnia...
E Winfield estava
louco de alegria. Enfiou os dedos na boca, fez uma careta terrível,
e saiu a pular e a gritar:
— Eu sou um porco
velho. Olha. Eu sou um porco velho. Olha o sangue, Ruthie! — E
cambaleou e caiu ao chão, agitando braços e pernas.
Mas Ruthie era mais
velha e sabia da seriedade da situação.
— E ir pra
Califórnia — disse ela outra vez. E sabia que esse era o momento
mais importante de sua vida.
John Steinbeck,
in As vinhas da ira
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