quarta-feira, 13 de junho de 2018

Uma tarde plena

O sagui é tão pequeno como um rato, e da mesma cor. A mulher, depois de se sentar no ônibus e de lançar uma tranquila vista de proprietária pelos bancos, engoliu um grito: ao seu lado, na mão de um homem gordo, estava aquilo que parecia um rato inquieto e que na verdade era um vivíssimo sagui. Os primeiros momentos da mulher versus sagui foram gastos em procurar sentir que não se tratava de um rato disfarçado.
Quando isso foi conseguido, começaram momentos deliciosos e intensos: a observação do bicho. O ônibus inteiro, aliás, não fazia outra coisa.
Mas era privilégio da mulher estar ao lado do personagem principal. De onde estava podia, por exemplo, reparar na minimeza que é uma língua de sagui: um risco de lápis vermelho.
E havia os dentes também: quase que se poderiam contar cerca de milhares de dentes dentro do risco da boca, e cada lasca menor que a outra, e mais branca. O sagui não fechou a boca um instante.
Os olhos eram redondos, hipertireóidicos, combinando com um ligeiro prognatismo – e essa mistura, se lhe dava um ar estranhamente impudico, formava uma cara meio oferecida de menino de rua, desses que estão permanentemente resfriados e que ao mesmo tempo chupam bala e fungam o nariz.
Quando o sagui deu um pulo no colo da senhora, esta conteve um frisson, e o prazer encabulado de quem foi eleita.
Mas os passageiros olharam-na com simpatia, aprovando o acontecimento, e, um pouco ruborizada, ela aceitou ser a tímida favorita. Não o acariciou porque não sabia se esse era o gesto a ser feito.
E nem o bicho sofria à míngua de carinho. Na verdade o seu dono, o homem gordo, tinha por ele um amor sólido e severo, de pai para filho, de dono para mulher. Era um homem que, sem um sorriso, tinha o chamado coração de ouro. A expressão de seu rosto era até trágica, como se ele tivesse missão. Missão de amar? O sagui era o seu cachorro na vida.
O ônibus, na brisa, como embandeirado, avançava. O sagui comeu um biscoito. O sagui coçou rapidamente a redonda orelha com a perna fina de trás. O sagui guinchou. Pendurou-se na janela, e espiou o mais depressa que podia – despertando nos ônibus opostos caras que se espantavam e que não tinham tempo de averiguar se tinham mesmo visto o que tinham visto.
Enquanto isso, perto da senhora, uma outra senhora contou a outra senhora que tinha um gato. Quem tinha posses de amor, contou.
Foi nesse ambiente de família feliz que um caminhão quis passar à frente do ônibus, houve quase encontro fatal, os gritos. Todos saltaram depressa. A senhora, atrasada, com hora marcada, tomou um táxi.
Só no táxi lembrou-se de novo do sagui.
E lamentou com um sorriso sem graça que – sendo os dias que correm tão cheios de notícias nos jornais e com tão poucas para ela – tivessem os acontecimentos se distribuído tão mal a ponto de um sagui e um quase desastre sucederem na mesma hora.
Aposto” – pensou – “que nada mais me acontecerá durante muito tempo, aposto que agora vou entrar no tempo das vacas magras.” Que era em geral seu tempo.
Mas nesse mesmo dia aconteceram outras coisas. Todas até que dentro da categoria de bens declaráveis. Só que não eram comunicáveis. Essa mulher era, aliás, um pouco silenciosa para si mesma e não se entendia muito bem consigo própria.
Mas assim é. E jamais se soube de um sagui que tenha deixado de nascer, viver e morrer – só por não se entender ou não ser entendido.
De qualquer modo fora uma tarde embandeirada.
Clarice Lispector, in Todos os contos

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