Não
existe alternativa: a globalização começou com o primeiro homem. O
primeiro homem (se é que alguma vez existiu “um primeiro” homem)
era já a humanidade inteira. Essa humanidade produziu infinitas
respostas adaptativas. O que podemos fazer, nos dias de hoje, é
responder à globalização desumanizante com uma outra globalização,
feita à nossa maneira e com os nossos propósitos. Não tanto para
contrapor. Mas para criar um mundo plural em que todos possam
mundializar e ser mundializados. Sem hegemonia, sem dominação. Um
mundo que escuta as vozes diversas, em que todos são, em simultâneo,
centro e periferia.
Só
há um caminho. Que não é o da imposição. Mas o da sedução. Os
outros necessitam conhecer-nos. Porque até aqui “eles” conhecem
uma miragem. O nosso retrato - o retrato feito pelos “outros” -
foi produzido pela sedimentação de estereótipos. Pior do que a
ignorância é essa presunção de saber. O que se globalizou foi,
antes de mais, essa ignorância disfarçada de arrogância. Não é o
rosto mas a máscara que se veicula como retrato.
A
questão é, portanto, a de um outro conhecimento. Se os outros nos
conhecerem, se escutarem a nossa voz e, sobretudo, se encontrarem
nessa descoberta um motivo de prazer, só então estaremos criando
esse território de diversidade e de particularidade.
O
problema parece ser o de que nós próprios — os do Terceiro Mundo
— nos conhecemos mal. Mais grave ainda: muitos de nós nos olhamos
com os olhos dos outros. Um velho ditado africano avisa: não
necessitamos de espelho para olhar o que trazemos no pulso. A visão
que temos da nossa História e das nossas dinâmicas não foi por nós
construída. Não é nossa. Pedimos emprestado aos outros a lógica
que levou à nossa própria exclusão e à mistificação do nosso
mundo periférico. Temos que aprender a pensar e sentir de acordo com
uma racionalidade que seja nossa e que exprima a nossa
individualidade.
Fomos
empurrados para definir aquilo que se chamam “identidades”.
Deram-nos para isso um espelho viciado. Só parece refletir a “nossa”
imagem porque o nosso olhar foi educado a identificarmo-nos de uma
certa maneira. O espelho deforma o que trazemos amarrado no pulso.
Pior que isso: amarra-nos o pulso. E aprisiona o olhar. Onde
deveríamos ver dinâmicas vislumbramos essências, onde deveríamos
descobrir processos apenas notamos imobilidade.
Mia
Couto, in
Pensatempos
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