quinta-feira, 14 de junho de 2018

Tempos modernos

Embora todos esses sapiens tenham se tornado cada vez mais impermeáveis aos caprichos da natureza, estão cada vez mais sujeitos aos ditames dos governos e das indústrias modernas. A Revolução Industrial abriu caminho para uma longa linha de experimentos em engenharia social e uma série ainda mais longa de transformações imprevistas na vida cotidiana e na mentalidade humana. Um exemplo entre muitos é a substituição dos ritmos da agricultura tradicional pelo cronograma preciso e uniforme da indústria.
A agricultura tradicional dependia de ciclos de tempo natural e crescimento orgânico. A maioria das sociedades não era capaz de medir o tempo com precisão, e tampouco estava muito interessada em fazê-lo. O mundo seguia seu curso sem relógios nem horários, sujeito apenas aos movimentos do Sol e aos ciclos de crescimento das plantas. Não havia um dia de trabalho uniforme, e todas as rotinas mudavam drasticamente de uma estação para outra. As pessoas sabiam onde o Sol estava e esperavam ansiosas por presságios da estação chuvosa e da época de colheita, mas não sabiam que horas eram e dificilmente se importavam em saber em que ano estavam. Se um viajante perdido no tempo aparecesse em uma aldeia medieval e perguntasse a um transeunte “Em que ano estamos?”, o aldeão ficaria tão perplexo diante da pergunta quanto diante da roupa ridícula do estranho.
Ao contrário dos camponeses e sapateiros medievais, a indústria moderna se importa pouco com o Sol ou com a estação do ano. Santifica a precisão e a uniformidade. Por exemplo, em uma oficina medieval cada sapateiro fazia um sapato inteiro, da sola ao cadarço. Se um sapateiro se atrasasse para o trabalho, isso não atrasava os demais. No entanto, na linha de montagem de uma fábrica de sapatos moderna, cada operário maneja uma máquina que produz apenas uma pequena parte de um sapato, que então é passada à máquina seguinte. Se o funcionário que opera a máquina número 5 perdeu a hora, atrasa todas as outras máquinas. A fim de evitar tais calamidades, todos devem aderir a uma grade horária precisa. Cada trabalhador chega no trabalho exatamente à mesma hora. Todos almoçam juntos, quer tenham fome, quer não. Todos vão para casa quando uma sirene anuncia que seu turno chegou ao fim – e não quando terminaram seu projeto.
A Revolução Industrial transformou a grade horária e a linha de montagem em um modelo para quase todas as atividades humanas. Logo depois que as fábricas impuseram seus cronogramas ao comportamento humano, as escolas também adotaram grades horárias precisas, seguidas dos hospitais, dos gabinetes de governo e das mercearias. Mesmo em lugares desprovidos de máquinas e linhas de montagem, a grade horária imperou. Se o turno na fábrica termina às cinco da tarde, é melhor o bar das redondezas abrir suas portas às 17h02.
Um elo crucial na disseminação do sistema de grades horárias foi o transporte público. Se os operários precisassem iniciar seu turno às oito da manhã, o trem ou ônibus tinha de chegar ao portão da fábrica até as 7h55. Um atraso de poucos minutos desaceleraria a produção e, talvez, inclusive levasse à demissão dos que chegaram atrasados. Em 1784, começou a operar na Grã-Bretanha um serviço de carruagem com um cronograma divulgado. Sua grade horária especificava apenas o horário de partida, não de chegada. Na época, cada cidade e vila britânica tinha seu próprio horário local, que podia diferir do horário de Londres em até meia hora. Quando era meio-dia em Londres, era, talvez, 12h20 em Liverpool e 11h50 em Canterbury. Como não havia telefones, nem rádio ou televisão, nem trens rápidos – quem poderia saber, e quem se importava?
O primeiro serviço de trem comercial começou operando entre Liverpool e Manchester em 1830. Dez anos depois, foi divulgada a primeira grade horária de trens. Os trens eram muito mais rápidos que as velhas carruagens e, por isso, as diferenças nos horários locais se tornaram um grande incômodo. Em 1847, as companhias ferroviárias britânicas se reuniram e concordaram que, dali em diante, todas as grades horárias de trens seriam ajustadas com o horário do Observatório de Greenwich, e não com o horário local de Liverpool, Manchester ou Glasgow. Cada vez mais instituições seguiram os passos das companhias ferroviárias. Finalmente, em 1880, o governo britânico deu o passo sem precedentes de legislar que todas as grades horárias na Grã-Bretanha deveriam seguir Greenwich. Pela primeira vez na história, um país adotou um horário nacional e obrigou sua população a viver de acordo com um relógio artificial, em vez de seguir os relógios locais ou os ciclos do amanhecer ao entardecer.
Esse começo modesto gerou uma rede global de grades horárias, sincronizadas até nas frações de segundo. Quando os meios de comunicação – primeiro o rádio, depois a televisão – fizeram seu début, entraram em um mundo de grades horárias e se tornaram seus principais agentes e divulgadores. Entre as primeiras coisas que as estações de rádio transmitiram estavam os sinais horários, apitos que permitiam que povoados distantes e navios em alto-mar ajustassem seus relógios. Mais tarde, as estações de rádio adotaram o costume de transmitir o noticiário de hora em hora. Hoje em dia, o primeiro item de todo programa de notícias – mais importante até mesmo que o início de uma guerra – é a hora. Durante a Segunda Guerra Mundial, o BBC News foi transmitido para a Europa ocupada por nazistas. Cada noticiário começava com uma transmissão ao vivo do Big Ben tocando a hora – o som mágico da liberdade. Físicos alemães engenhosos encontraram uma forma de determinar as condições do tempo em Londres com base em diferenças minúsculas no tom dos dim-dons transmitidos. Essa informação foi de inestimável ajuda para a Luftwaffe. Quando o serviço secreto britânico descobriu isso, substituiu a transmissão ao vivo por gravações do famoso relógio.
Para gerenciar a rede de grades horárias, relógios portáteis baratos, porém precisos, se tornaram onipresentes. Em cidades assírias, sassânidas ou incas possivelmente tenham existido no máximo alguns relógios de sol. Nas cidades medievais europeias, em geral havia um único relógio – uma máquina gigante no topo de uma torre alta na praça da cidade. Esses relógios de torres eram notoriamente imprecisos, mas, como não havia outros relógios na cidade para contradizê-los, não fazia muita diferença. Hoje, uma única família abastada costuma ter mais relógios em casa do que um país medieval inteiro. Você pode dizer a hora consultando seu relógio de pulso, passando os olhos por seu Android, espreitando o despertador ao lado da sua cama, observando o relógio de parede na cozinha, fitando o micro-ondas, dando uma espiada no aparelho de TV ou de DVD ou vendo de relance a barra de tarefas no seu computador. Você precisa fazer um esforço consciente para não saber que horas são.
Uma pessoa típica consulta esses relógios dezenas de vezes por dia, porque quase tudo que fazemos tem de ser feito em um momento específico. Um despertador nos acorda às sete da manhã, aquecemos nosso pãozinho congelado por exatos 50 segundos no micro-ondas, escovamos os dentes por três minutos até a escova de dentes elétrica apitar, pegamos o trem das 7h40 para o trabalho, corremos na esteira mecânica da academia até o alarme anunciar que se passou meia hora, sentamos em frente à TV às sete da noite para assistir a nosso programa favorito, somos interrompidos em momentos predefinidos por comerciais que custam mil dólares por segundo e acabamos por descarregar todo o nosso mal-estar em um terapeuta que restringe nosso falatório à hora de terapia, que agora, por convenção, dura 50 minutos. A Revolução Industrial provocou dezenas de reviravoltas importantes na sociedade humana. Adaptar-se ao tempo industrial é apenas uma delas. Outros exemplos notáveis incluem a urbanização, o desaparecimento da classe camponesa, a ascensão do proletariado industrial, o empoderamento do indivíduo comum, a democratização, a cultura jovem e a desintegração do patriarcado.
Mas todas essas reviravoltas são obscurecidas pela revolução social mais grandiosa que já atingiu a humanidade: o colapso da família e da comunidade local e sua substituição pelo Estado e pelo mercado. Até onde sabemos, desde os tempos mais antigos, há mais de 1 milhão de anos, os humanos viviam em pequenas comunidades íntimas, em que quase todos os membros eram parentes. A Revolução Cognitiva e a Revolução Agrícola não mudaram isso. Elas reuniram famílias e comunidades para criar tribos, cidades, reinos e impérios, mas as famílias e as comunidades continuaram sendo os tijolos essenciais de todas as sociedades humanas. A Revolução Industrial, por sua vez, conseguiu, em pouco mais de dois séculos, transformar esses tijolos em átomos. A maior parte das funções tradicionais das famílias e comunidades foram entregues aos Estados e aos mercados.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

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