quarta-feira, 6 de junho de 2018

Será que a religião fez contribuições úteis para a civilização?

Minha visão pessoal a respeito da religião é a mesma de Lucrécio. Vejo-a como uma doença derivada do medo e como fonte de tristeza incalculável para a raça humana. Não posso, no entanto, negar que ela realizou, sim, algumas contribuições à civilização. No início, ajudou a estabelecer o calendário e fez com que os sacerdotes egípcios relatassem eclipses com cuidado tal que, com o tempo, tornaram-se capazes de prevê-los. Estou pronto para admitir esses dois serviços prestados, mas não sei de mais nenhum outro.
A palavra “religião” é usada hoje em sentido bastante vago. Algumas pessoas, sob influência de um protestantismo extremo, empregam-na para denotar quaisquer convicções pessoais relativas à moral ou à natureza do universo. Esse uso da palavra é bastante anistórico. A religião é, fundamentalmente, um fenômeno social. É possível que as igrejas devam sua origem a professores com convicções individuais muito fortes, mas esses professores raramente exerceram muita influência sobre as igrejas que fundaram, ao passo que as igrejas exerceram enorme influência sobre as comunidades em que floresceram. Peguemos como exemplo o caso que mais interessa aos integrantes da civilização ocidental: os ensinamentos de Cristo, tal como aparecem nos Evangelhos, têm tido extraordinariamente pouco a ver com a ética dos cristãos. A coisa mais importante sobre o cristianismo, do ponto de vista social e histórico, não é Cristo, e sim a Igreja, de modo que, se formos julgar o cristianismo como força social, não devemos recorrer aos Evangelhos em busca de material. Cristo ensinou que se deve dar os bens que se tem aos pobres, que não se deve brigar, que não se deve ir à igreja e que não se deve punir o adultério. Nem católicos nem protestantes mostraram algum tipo de forte desejo de seguir os ensinamento d’Ele a respeito desses aspectos. Alguns franciscanos, é verdade, tentaram ensinar a doutrina da pobreza apostólica, mas o papa os condenou, e sua doutrina foi declarada herética. Ou, mais uma vez, consideremos um texto como “Não julgueis, para que não sejais julgados” e perguntemos a nós mesmos qual foi a influência que ele exerceu sobre a Inquisição e a Ku-Klux-Klan.
O que é verdadeiro a respeito do cristianismo é igualmente verdadeiro a respeito do budismo. Buda era amável e iluminado; em seu leito de morte, riu dos discípulos que o julgavam imortal. Mas o sacerdócio budista – tal como existe, por exemplo, no Tibete – tem sido obscurantista, tirânico e cruel no mais alto nível.
Nada existe de acidental em relação a essa diferença entre uma Igreja e seu fundador. Logo que se supõe que a verdade absoluta está contida nos dizeres de um certo homem, eis que surge um corpo de especialistas para interpretar seus dizeres, e esses especialistas invariavelmente adquirem poder, já que detêm a chave para a verdade. Assim como qualquer outra casta privilegiada, usam seu poder em benefício próprio. São, no entanto, sob certo aspecto, piores do que qualquer outra casta privilegiada, já que seu negócio é expor uma verdade imutável, revelada de uma vez por todas em perfeição absoluta, de modo que se transformam necessariamente em oponentes de todo progresso intelectual e moral. A Igreja se opôs a Galileu e a Darwin, e em nossos dias opõe-se a Freud. Na época em que gozava de maior poder, foi ainda mais longe em sua oposição à via intelectual. O papa Gregório, o Grande, escreveu a um certo bispo uma carta que começava assim: “Um relato chegou até nós e não podemos mencioná-lo sem corar: o de que vós explicastes a gramática a certos amigos”. O bispo foi forçado, pela autoridade pontificial, a desistir deste ato depravado, e a latinidade só foi se recuperar no Renascimento. A Igreja é perniciosa não apenas no que diz respeito à intelectualidade, mas também à moralidade. Com isso quero dizer que ela ensina códigos éticos que não levam à felicidade humana. Quando, há alguns anos, um plebiscito foi realizado na Alemanha para discutir se as famílias reais depostas deveriam ter permissão para desfrutar de sua propriedade privada, as igrejas na Alemanha declararam oficialmente que seria contrário aos ensinamentos do cristianismo privá-las disso. As igrejas, como todos sabem, opuseram-se à abolição da escravatura durante o tempo que foi possível e, com algumas exceções bem divulgadas, opõem-se hoje ao movimento em direção à justiça econômica. O papa condenou o socialismo oficialmente.
Bertrand Russell, in Por que não sou cristão

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