segunda-feira, 18 de junho de 2018

O mundo acabou, meus filhos

Vezes sem conta perguntávamos: por que estávamos ali, longe de tudo e de todos? Meu pai respondia:
O mundo acabou, meus filhos. Apenas resta Jesusalém.
Eu era crente das palavras paternas. Ntunzi, porém, considerava tudo aquilo um delírio. Inconformado, voltava a indagar:
E não há mais ninguém no mundo?
Silvestre Vitalício inspirava como se a resposta pedisse muito peito e, fazendo soltar um demorado suspiro, murmurava:
Somos os últimos.
Diligencioso, Vitalício se ocupava em nos criar, com cuidados e esmeros. Mas evitando que o cuidado resvalasse em ternura. Ele era homem. E nós estávamos na escola de ser homens. Os únicos e últimos homens. Recordo que ele me afastava, com firme delicadeza, quando eu o abraçava:
Você fecha os olhos quando me abraça?
Nem sei, pai, nem sei.
Não deve fazer isso.
Fechar os olhos, pai?
Me abraçar.
Apesar do distanciamento físico, Silvestre Vitalício sempre se cumpriu pai materno, antepassado presente. Eu estranhava tal esmero. Porque esse zelo era a negação de tudo o que ele apregoava. Aquela dedicação só ganhava sentido se houvesse, em algum indescortinado lugar, um tempo cheio de futuro.
Mas, pai, nos conte. Como faleceu o mundo?
Na verdade, já não me lembro.
Mas o Tio Aproximado...
O Tio conta muita história...
Então, pai, nos conte o senhor.
O caso foi o seguinte: o mundo acabou mesmo antes do fim do mundo...
Terminara o universo sem espectáculo, sem rasgão nem clarão. Por definhamento, exaurido em desespero. E assim, vagamente, meu pai derivava sobre a extinção do cosmos. Primeiro, começaram a morrer os lugares-fêmeas: as nascentes, as praias, as lagoas. Depois, morreram os lugares-machos: os povoados, os caminhos, os portos.
Sobreviveu apenas este lugar. É aqui que vivemos de vez.
Viver? Ora, viver é cumprir sonhos, esperar notícias. Silvestre não sonhava, nem aguardava notícia. No princípio, ele queria um lugar onde ninguém se lembrasse do seu nome. Agora, ele próprio já não se lembrava quem era.
Tio Aproximado deitava águas na fervura das paternas congeminações. Que o cunhado saíra da cidade por razões banais, comuns a quem sente ser possuído pela idade.
Vosso pai queixava-se de que se sentia envelhecer.
Velhice não é idade: é um cansaço. Quando ficamos velhos, todas as pessoas parecem iguais. Essa era a lamentação de Silvestre Vitalício. Os habitantes e os lugares já eram todos indistintos quando ele se decidiu pela viagem total. Outras vezes — e foram tantas vezes — Silvestre teria declarado: a vida é demasiado preciosa para ser esbanjada num mundo desencantado.
Vosso pai está muito psicológico — concluía o Tio. — Isto passa-lhe, mais dia.
Passaram dias e anos e o pai manteve o seu delírio. Com o tempo, as aparições do Tio foram rareando. A mim me doíam aquelas crescentes ausências, mas o meu irmão me desenganava:
Tio Aproximado não é quem você pensa — avisava-me.
Não entendo.
É um carcereiro. É isso que ele é, um carcereiro.
Como assim?
Esse seu tiozinho está é guardando esta prisão a que estamos condenados.
E por que haveríamos de estar em prisão?
Por causa do crime.
Que crime, Ntunzi?
O crime que o nosso pai cometeu.
Não diga isso, mano.
Todas as histórias que o pai inventava sobre os motivos de abandonar o mundo, todas aquelas fantasiosas versões tinham um único propósito: empoeirar-nos o juízo, afastando-nos das memórias do passado.
A verdade é só uma: o nosso velho está fugindo da justiça.
E que crime ele cometeu?
Um dia lhe conto.
Mia Couto, in Antes de nascer o mundo

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