sábado, 2 de junho de 2018

O morto no mar da Urca

Eu estava no apartamento de d. Lourdes, costureira, provando meu vestido pintado pela Olly – e dona Lourdes disse: morreu um homem no mar, olhe os bombeiros. Olhei e só vi o mar que devia ser muito salgado, mar azul, casas brancas. E o morto?
O morto em salmoura. Não quero morrer! gritei-me muda dentro de meu vestido. O vestido é amarelo e azul. E eu? morta de calor, não morta de mar azul.
Vou contar um segredo: meu vestido é lindo e não quero morrer. Na sexta-feira o vestido estará em casa, e no sábado eu o usarei. Sem morte, só mar azul. Existem nuvens amarelas? Existem douradas. Eu não tenho história. O morto tem? Tem: foi tomar banho de mar na Urca, o bobo, e morreu, quem mandou? Eu tomo banho de mar com cuidado, não sou tola, e só vou à Urca para provar vestido. E três blusas. S. foi comigo. Ela é minuciosa na prova. E o morto? minuciosamente morto?
Vou contar uma história: era uma vez um rapaz novo ainda que gostava de banho de mar. Daí, ele foi numa manhã de quarta-feira para a Urca. Na Urca, nas pedras da Urca, eu não vou porque está cheio de ratos. Mas o rapaz não ligava para os ratos. Nem os ratos ligavam para ele. O casario branco da Urca. Isso ele ligava. Então tinha uma mulher provando um vestido e que chegou tarde demais: o rapaz já estava morto. Salgado. Tinha piranha no mar? Fiz que não entendi. Não entendo mesmo a morte. Um rapaz morto?
Morto de bobo que era. Só se deve ir à Urca para provar vestido alegre. A mulher, que sou eu, só quer alegria. Mas eu me curvo diante da morte. Que virá, virá, virá. Quando? aí é que está, pode vir a qualquer momento. Mas eu, que estava provando o vestido no calor da manhã, pedi uma prova de Deus. E senti uma coisa intensíssima, um perfume intenso demais de rosas. Então tive a prova, as duas provas; de Deus e do vestido.
Só se deve morrer de morte morrida, nunca de desastre, nunca de afogação no mar. Eu peço proteção para os meus, que são muitos. E a proteção, tenho certeza, virá.
Mas e o rapaz? e sua história? Capaz de ser estudante. Nunca saberei. Fiquei apenas olhando o mar e o casario. Dona Lourdes imperturbável, perguntando se apertava mais na cintura. Eu disse que sim, que cintura é para se ver apertada. Mas estava atônita. Atônita no meu vestido lindo.
Clarice Lispector, in Todos os contos

Nenhum comentário:

Postar um comentário