sábado, 2 de junho de 2018

Jogo perigoso

Há uma ideia do poeta e crítico espanhol Angel Crespo (1926-1995) que aprecio muito. Mais que isso: uma ideia que sempre me ajuda a viver. Diz Crespo em um de seus ensaios: “Quando não tenho certeza da verdade, minto para me certificar”.
Os moralistas, ele dizia, só acreditam em três tipos de mentira: a dolosa, a jocosa e a piedosa. A primeira, a dolosa, se faz passar pela verdade. A jocosa quer, apenas, fazer rir. A mentira piedosa nada mais deseja que consolar. As três desprezam a verdade.
Angel Crespo defende, ao contrário, o que chama de “mentira poética”. Aquela que usamos para obturar o grande vazio que se abre diante da ausência inevitável da verdade. Com ela, trabalham os ficcionistas. Ela é um tapete estendido entre as três mentiras dos moralistas e a busca interminável da verdade.
Volto às ideias de Crespo quando acabo de ler O campeonato, romance de Flávio Carneiro (editora Rocco). Uma ficção em que o personagem principal é a própria ficção. Em que a mentira tem um lugar de honra e se equipara à verdade.
André, o protagonista de Carneiro, sofre do vício da leitura. Não consegue controlar seu impulso para os livros. Já nas primeiras páginas do romance, é demitido do emprego porque não consegue parar de ler.
Leitor obsessivo, André é capaz de abrir um livro nas situações mais inadequadas. Aflita, sua namorada, Raquel, acredita que a literatura o impede de viver. Deseja curá-lo da ficção. Leva-o a um terapeuta da moda, o doutor Epifânio de Moraes Netto. A terapia não funciona.
Apaixonado por romances policiais, André só recupera algum equilíbrio quando cria um laço entre sua compulsão à leitura e sua vida profissional. Isso acontece quando ele resolve se tornar detetive particular.
Não deixa de ler, continua a ser um leitor compulsivo. Só que, agora, a ficção não é mais um refúgio, ela se transforma em um instrumento. Os romances que lê o ajudam em suas investigações. Usa a literatura não como fuga, mas como uma via de interpretação do mundo.
Já no primeiro anúncio que coloca nos jornais, usa uma frase de Auguste Dupin, o célebre detetive de Edgar Allan Poe. “Meu objetivo final é apenas a verdade.” Afirmação que, em vez de desmerecer a mentira (a ficção), reconhece seu status de verdade provisória.
O problema do escritor, dizia Virginia Woolf, não é buscar a verdade, mas “inventar formas de ser livre”. A literatura começa, em consequência, com uma operação íntima: a invenção de si. Ninguém cria ficções sem, antes disso, se inventar como autor. Ninguém se aproxima da verdade (porque a ela nunca se chega) sem amparar-se na mentira.
É a estratégia de André. Quando transporta a ficção literária para a realidade, ele nem despreza a literatura nem idealiza o real. Podemos dizer assim: ele faz o que é possível. A verdade é da ordem do impossível. A nós, pobres homens – sugere Angel Crespo –, só resta a mentira para lutar pela verdade.
Uma das chaves de O campeonato – um policial clássico, com investigações, pistas e ciladas – aparece na página 104. No momento em que André reencontra um velho amigo de faculdade, conhecido como o Santo.
O apelido vem de seu apego ao misticismo. Ficou o nome, desapareceu a origem. “Eu estava no caminho errado, irmão”, ele admite. O Santo procurou, durante anos, respostas para os mistérios – como se a verdade fosse uma pepita de ouro guardada no fundo de um baú. “Acontece que não há mistérios”, ele reconhece. Não existe pepita alguma, só existe a busca.
Recorda, então, dos Essênios, a seita judaica ascética, contemporânea de Cristo. Alguns acreditam que, entre os 13 e os 30 anos de idade, Jesus teria vivido entre eles – suposição que preenche uma lacuna em sua biografia. E o que teria aprendido? “Um dos segredos dos Essênios era saber lidar com o silêncio”, diz o Santo.
Acreditavam os Essênios que a voz humana, assim como as palavras, não deve ser desperdiçada. Eles nos ensinaram um grande respeito pelas palavras, diz o Santo. As palavras – representações do real – são, no fim das contas, a matéria da vida. “Não há verdade. Representações, é tudo o que há”, ele resume.
As meditações do Santo combinam com a obsessão de André pelos livros. Se tudo é representação, a leitura de ficções é tão importante quanto a busca de provas materiais. Em outras palavras (sempre as palavras): na aproximação da verdade, as ficções (as mentiras poéticas, não as dolosas, ou as jocosas, ou as piedosas) são tão importantes quanto os fatos.
É porque nivela realidade e ficção que André avança em sua busca. Do mesmo modo, Flávio Carneiro escreve um policial clássico – com sustos, desvios, ciladas – para nos conduzir, iludidos pelas delícias da leitura, até a borda do real.
Podemos ler O campeonato na praia, no metrô ou mesmo – como André – às escondidas, no expediente de trabalho. Que não nos chamem de sonhadores ou de preguiçosos! O livro não se limita a nos divertir; contando uma história simples e despretensiosa; ele nos joga bem na cara da realidade.
Lendo, outro dia, a correspondência de Anton Tchecov, encontrei uma carta, ao editor Aleksei Suvórin, que vem em meu socorro. Diz Tchecov: “Eu vi tudo; a questão agora não é o que eu vi, mas como vi”. Fatos brutos, indícios, provas não bastam, se você é incapaz de costurá-los. Se você é incapaz de perceber a perspectiva (limitada, subjetiva) desde a qual os observa. E se não consegue admitir que grande parte do que vê, na verdade, lhe escapa.
A lição de Tchecov serve tanto aos que se sentem donos da verdade como aos que, ao contrário, acreditam que “a imaginação pode tudo”. Ela lhes ensina que a ficção é um jogo perigoso.
É nesse sentido que André, o narrador de O campeonato, se transforma em um modelo. Não de personagem perfeito, mas de personagem imperfeito. Ele se torna, ainda, um modelo de leitor – aquele que lê ficções (mentiras) não porque deseja enganar-se ou fugir, mas porque deseja saber.
Aquele que sabe que a literatura é muito mais do que uma distração para céticos e preguiçosos.
José Castelo, in Sábados inquietos

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