Há uma ideia do
poeta e crítico espanhol Angel Crespo (1926-1995) que aprecio muito.
Mais que isso: uma ideia que sempre me ajuda a viver. Diz Crespo em
um de seus ensaios: “Quando não tenho certeza da verdade, minto
para me certificar”.
Os moralistas, ele
dizia, só acreditam em três tipos de mentira: a dolosa, a jocosa e
a piedosa. A primeira, a dolosa, se faz passar pela verdade. A jocosa
quer, apenas, fazer rir. A mentira piedosa nada mais deseja que
consolar. As três desprezam a verdade.
Angel Crespo
defende, ao contrário, o que chama de “mentira poética”. Aquela
que usamos para obturar o grande vazio que se abre diante da ausência
inevitável da verdade. Com ela, trabalham os ficcionistas. Ela é um
tapete estendido entre as três mentiras dos moralistas e a busca
interminável da verdade.
Volto às ideias de
Crespo quando acabo de ler O campeonato, romance de Flávio
Carneiro (editora Rocco). Uma ficção em que o personagem principal
é a própria ficção. Em que a mentira tem um lugar de honra e se
equipara à verdade.
André, o
protagonista de Carneiro, sofre do vício da leitura. Não consegue
controlar seu impulso para os livros. Já nas primeiras páginas do
romance, é demitido do emprego porque não consegue parar de ler.
Leitor obsessivo,
André é capaz de abrir um livro nas situações mais inadequadas.
Aflita, sua namorada, Raquel, acredita que a literatura o impede de
viver. Deseja curá-lo da ficção. Leva-o a um terapeuta da moda, o
doutor Epifânio de Moraes Netto. A terapia não funciona.
Apaixonado por
romances policiais, André só recupera algum equilíbrio quando cria
um laço entre sua compulsão à leitura e sua vida profissional.
Isso acontece quando ele resolve se tornar detetive particular.
Não deixa de ler,
continua a ser um leitor compulsivo. Só que, agora, a ficção não
é mais um refúgio, ela se transforma em um instrumento. Os romances
que lê o ajudam em suas investigações. Usa a literatura não como
fuga, mas como uma via de interpretação do mundo.
Já no primeiro
anúncio que coloca nos jornais, usa uma frase de Auguste Dupin, o
célebre detetive de Edgar Allan Poe. “Meu objetivo final é apenas
a verdade.” Afirmação que, em vez de desmerecer a mentira (a
ficção), reconhece seu status de verdade provisória.
O problema do
escritor, dizia Virginia Woolf, não é buscar a verdade, mas
“inventar formas de ser livre”. A literatura começa, em
consequência, com uma operação íntima: a invenção de si.
Ninguém cria ficções sem, antes disso, se inventar como autor.
Ninguém se aproxima da verdade (porque a ela nunca se chega) sem
amparar-se na mentira.
É a estratégia de
André. Quando transporta a ficção literária para a realidade, ele
nem despreza a literatura nem idealiza o real. Podemos dizer assim:
ele faz o que é possível. A verdade é da ordem do impossível. A
nós, pobres homens – sugere Angel Crespo –, só resta a mentira
para lutar pela verdade.
Uma das chaves de O
campeonato – um policial clássico, com investigações, pistas
e ciladas – aparece na página 104. No momento em que André
reencontra um velho amigo de faculdade, conhecido como o Santo.
O apelido vem de
seu apego ao misticismo. Ficou o nome, desapareceu a origem. “Eu
estava no caminho errado, irmão”, ele admite. O Santo procurou,
durante anos, respostas para os mistérios – como se a verdade
fosse uma pepita de ouro guardada no fundo de um baú. “Acontece
que não há mistérios”, ele reconhece. Não existe pepita alguma,
só existe a busca.
Recorda, então,
dos Essênios, a seita judaica ascética, contemporânea de Cristo.
Alguns acreditam que, entre os 13 e os 30 anos de idade, Jesus teria
vivido entre eles – suposição que preenche uma lacuna em sua
biografia. E o que teria aprendido? “Um dos segredos dos Essênios
era saber lidar com o silêncio”, diz o Santo.
Acreditavam os
Essênios que a voz humana, assim como as palavras, não deve ser
desperdiçada. Eles nos ensinaram um grande respeito pelas palavras,
diz o Santo. As palavras – representações do real – são, no
fim das contas, a matéria da vida. “Não há verdade.
Representações, é tudo o que há”, ele resume.
As meditações do
Santo combinam com a obsessão de André pelos livros. Se tudo é
representação, a leitura de ficções é tão importante quanto a
busca de provas materiais. Em outras palavras (sempre as palavras):
na aproximação da verdade, as ficções (as mentiras poéticas, não
as dolosas, ou as jocosas, ou as piedosas) são tão importantes
quanto os fatos.
É porque nivela
realidade e ficção que André avança em sua busca. Do mesmo modo,
Flávio Carneiro escreve um policial clássico – com sustos,
desvios, ciladas – para nos conduzir, iludidos pelas delícias da
leitura, até a borda do real.
Podemos ler O
campeonato na praia, no metrô ou mesmo – como André – às
escondidas, no expediente de trabalho. Que não nos chamem de
sonhadores ou de preguiçosos! O livro não se limita a nos divertir;
contando uma história simples e despretensiosa; ele nos joga bem na
cara da realidade.
Lendo, outro dia, a
correspondência de Anton Tchecov, encontrei uma carta, ao editor
Aleksei Suvórin, que vem em meu socorro. Diz Tchecov: “Eu vi tudo;
a questão agora não é o que eu vi, mas como vi”. Fatos brutos,
indícios, provas não bastam, se você é incapaz de costurá-los.
Se você é incapaz de perceber a perspectiva (limitada, subjetiva)
desde a qual os observa. E se não consegue admitir que grande parte
do que vê, na verdade, lhe escapa.
A lição de
Tchecov serve tanto aos que se sentem donos da verdade como aos que,
ao contrário, acreditam que “a imaginação pode tudo”. Ela lhes
ensina que a ficção é um jogo perigoso.
É nesse sentido
que André, o narrador de O campeonato, se transforma em um
modelo. Não de personagem perfeito, mas de personagem imperfeito.
Ele se torna, ainda, um modelo de leitor – aquele que lê ficções
(mentiras) não porque deseja enganar-se ou fugir, mas porque deseja
saber.
Aquele que sabe que
a literatura é muito mais do que uma distração para céticos e
preguiçosos.
José Castelo,
in Sábados inquietos
Nenhum comentário:
Postar um comentário