domingo, 17 de junho de 2018

O fantasma que tanto temia

Comecei a ver cada vez mais se aproximando, cada vez mais claramente, o fantasma que tanto temia. A volta a casa, o voltar a encerrar-me no quarto, o ter de permanecer quieto diante do desespero! Não podia escapar a isso ainda que continuasse caminhando horas e horas: o regresso à minha porta, à minha mesa cheia de livros, ao divã com o reto de minha amada pendurado em cima; não podia escapar ao instante em que tomaria a navalha e teria de cortar o pescoço. Esta imagem fazia-se cada vez mais clara diante de mim e cada vez mais precisa; sentindo o coração bater-me fortemente, provava a angústia maior de todas as angústias; o medo à morte! Sim, tinha um pavoroso horror à morte. Embora não vislumbrasse outra saída, embora o tédio, a dor e o desespero me tivessem sitiado, embora já nada me atraísse nem pudesse causar-me alegria ou dar-me esperanças, horrorizava-me indizivelmente a execução, o último instante, a fria ferida aberta na própria carne! Não enxergava nenhum caminho por onde pudesse escapar daquilo que tanto temia. Se na luta contra o desespero e a covardia esta última vencesse também hoje por acaso, amanhã e todos os dias seguintes estaria diante de mim o desespero, aumentado pelo desprezo de mim mesmo. Tantas vezes apanharia a lâmina para tornar a afastá-la, que uma vez decerto chegaria ao fim. Então era melhor fazê-lo logo, hoje! Falava comigo mesmo como se falasse com uma criança assustada, mas a criança não me ouvia, fugia dali, queria viver. Continuei minha caminhada inconstante pela cidade, fiz amplos círculos em torno de minha casa, com a ideia do regresso em mente, mas sempre procrastinando. Parava aqui e ali nas tabernas, enquanto esvaziava um copo ou dois; logo voltava a caminhar, em amplos círculos em torno da meta, em torno da navalha, em torno da morte. Às vezes, sentava-me, morto de cansaço, num banco, na borda de uma fonte, à beira da calçada; ouvia bater meu coração, limpava o suor da face, continuava meu trajeto, cheio de angústias mortais, cheio de vacilantes ânsias de viver. Desta forma, cheguei, já avançada a noite, a uma hospedaria de ura quarteirão afastado e que pouco conhecia, por trás de cujas janelas soava uma estridente música de dança. Sobre a porta li ao entrar um velho letreiro: Água Negra. Dentro havia grande animação, muita fumaça, cheiro de vinho e algazarra; no salão, mais para dentro, estavam dançando ao som de uma música ensurdecedora. Detive-me na primeira sala onde havia umas pessoas simples, na sua maioria pobremente vestidas, enquanto que na sala de baile podiam-se ver pessoas elegantes. Empurrado pelos circunstantes, acabei por sentar-me a uma mesa, junto ao balcão; uma jovem bonita e pálida estava sentada num divã junto à parede; trazia um vestido de baile com grande decote e uma flor enfiada nos cabelos. Lançou-me um olhar observador e cordial ao me aproximar e com um sorriso chegou-se para o lado a fim de ceder-me lugar.
Com licença? — perguntei, sentando-me ao seu lado.
À vontade — disse ela.
Obrigado — respondi. — Não consigo ir para casa. Não quero, não quero, não posso. Quero ficar aqui, ao seu lado, se é que me permite. Não, não devo ir para casa.
Ela assentiu com a cabeça como se me compreendesse, e enquanto o fazia, observei a onda de cabelo que lhe ia da testa até atrás da orelha e descobri que a flor já murcha era uma camélia. No salão a música ressoava e diante do balcão as garçonetes transmitiam aos gritos os pedidos do público.
Pode ficar aqui à vontade — disse, numa voz que me fez muito bem. — Por que não quer voltar para casa?
Não posso. Tenho algo à minha espera. Não posso, não posso; é horrível.
Pois deixa esperar à vontade e fique por aqui. Mas antes de mais nada, vamos limpar esses óculos, que assim não vai conseguir ver nada. Empreste-me o lenço. Que vamos beber? Borgonha?
Limpou meus óculos e pude então vê-la melhor: o rosto pálido e a boca vermelha cor de sangue, os claros olhos cinzentos, a testa lisa e fresca, com a onda a cair-lhe sobre a orelha. Afável c com um toque de ironia, começou a deixar-me à vontade; pediu vinho, brindou comigo e olhou para os meus pés.
Santo Deus! de onde esta vindo? Parece ate que veio a pé de Paris. Isso não é maneira de se vir a um baile. Eu disse sim e não, sorri um pouquinho e deixei-a falar. Estava achando-a bastante encantadora, para surpresa minha, pois até então sempre olhara com desconfiança a esta classe de moças. E foi muito bondosa comigo, começou a tratar-me da maneira que melhor me convinha naquele momento. E assim foi sempre a partir daquele instante! Tratou-me com a doçura de que eu necessitava e troçou de mim exatamente da maneira que convinha. Pediu um sanduíche e ordenou-me que o comesse. Serviu-me de vinho e mandou-me bebê-lo devagar e não de um trago. Depois elogiou minha obediência
Estou vendo que é um bom menino — disse, para animar-me. — Não é de tornar as coisas difíceis. Mas sou capaz de apostar que há muito tempo não obedece a ninguém.
Isto mesmo. Como soube?
Não é difícil. Obedecer é assim como comer ou beber. Quando se passa muito tempo sem fazer uma ou outra coisa, não é preciso que insistam conosco. Não é verdade? Não ficou satisfeito de fazer o que lhe disse?
Muito contente. Como sabe de tudo?
Você é que facilita as coisas. Sou capaz talvez de lhe dizer o que está esperando em casa e o que tanto o angustia. Mas, você sabe muito bem o que é e não precisamos falar no assunto, não é mesmo? Assunto desagradável! Ou a gente se enforca e está tudo muito bem, pois se deve ter lá suas razões para isso, ou então continua vivendo sem se preocupar senão com a vida. O negócio é este!
Ah! — exclamei — se fosse simples assim! Deus sabe o quanto me tenho preocupado com a vida e que isto de nada me serviu. Enforcar-se deve ser uma coisa difícil, suponho. Mas viver, viver é muito mais difícil! Só Deus sabe o quanto é difícil!
Verá como é sumamente fácil! Já começamos bem. Limpamos os óculos, você comeu, bebeu. Agora vamos escovar um pouco essas calças e sapatos e em seguida você vai dançar o shimmy comigo.
Vai ver que eu tinha razão! — exclamei exaltado. Nada mais desagradável para mim do que deixar de satisfazer um desejo seu. Mas não posso aceder ao que me pede. Não sei dançar o shimmy, nem a valsa, nem a polca, nem como se chamam todas essas outras; nunca aprendi a dançar em toda a minha vida. Agora está vendo que a coisa não é assim tão fácil quanto diz?
A bela jovem sorriu com os lábios cor de sangue e balançou a cabeça firme e resoluta. Enquanto a olhava, pensei ver nela alguma semelhança com Rosa Kreisler, a primeira jovem de quem me enamorei quando rapaz, só que Rosa tinha os cabelos castanhos e a pele morena. Não, não me lembrava com quem se parecia aquela estranha jovem; era alguém de minha primeira juventude, talvez de minha infância.
Hermann Hesse, in O Lobo da Estepe

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