“Odeio Carlos III
e o Marquês de Pombal”, disse uma voz ao meu lado. “Quando eles
expulsaram os jesuítas, destruíram um projeto civilizador. Foi uma
tragédia para todos nós.”
Enquanto o guia
falava em espanhol, os turistas o olhavam perplexos. Eu observava as
ruínas de uma missão jesuítica perto de Posadas. Os turistas
fotografaram as paredes e colunas amarelas, de um amarelo terroso,
avermelhado, escurecido pelo tempo; depois se afastaram para beber
refrigerante e cerveja. O guia, agora sozinho e calado, contemplava
uma escola do século XVIII.
Parecia um homem
tristíssimo. Quando me aproximei dele e disse que eu era um
visitante interessado nessa tragédia, me encarou com seus olhos
rasgados e perguntou: “Visitante ou turista?”.
“Acho que dá no
mesmo”, respondi.
“Não, não dá
no mesmo”, replicou em português, sem sotaque. “Hoje em dia os
turistas fotografam tudo, sem conhecer nada. Não querem ouvir
histórias do lugar, nem a história do lugar”.
Argumentei que a
imensa maioria dos turistas sempre agiu assim.
“Não é
verdade”, disse em espanhol, também sem sotaque.
Perguntei se ele
era bilíngue.
Sem nenhum
pedantismo, disse que podia reverenciar a lua em seis idiomas. O pai
de José Yu Hu era um chinês de Goa; a mãe, uma brasileira de Foz
do Iguaçu, neta de índios.
“Nasci a poucos
metros do rio Paraná”, ele disse. “Cresci na tríplice
fronteira, ouvindo o espanhol paraguaio e argentino, ouvindo o
cantonês falado por meu pai e o português materno. Essas três
línguas não são menos familiares para mim do que a paisagem de
Foz, Puerto Iguazu e Ciudad del Este.”
Yu Hu contou que
aos dezenove anos já era guia de turismo. Estudou a história dos
países da tríplice fronteira, leu muitos livros da literatura
desses países, leu tudo sobre a Guerra do Paraguai, que, para ele,
era uma das maiores atrocidades desta América e a menos comentada,
ou a mais ocultada.
“Há quarenta e
dois anos trabalho com turismo. Naveguei com turistas pelo rio
Paraná, andei com eles pela floresta, levei-os para ver de perto as
cachoeiras, principalmente a Garganta do Diabo. Antes, quando eu
recitava poemas sobre a natureza selvagem, eles me ouviam com
interesse. Recitava poemas chineses e uma lenda guarani, que eu mesmo
tinha traduzido; recitava poemas ingleses, italianos,
norte-americanos, franceses, latino-americanos, e os turistas se
deleitavam com as minhas palavras; quer dizer, com os versos de
grandes poetas traduzidos por mim.”
Bebeu água do
cantil e fez um gesto contrariado com a cabeça. Eu me refugiara na
sombra de uma parede de pedras, mas Yu Hu não saiu do sol. Era
moreno, e seu rosto asiático podia ser também indígena.
“Às vezes
recitava poemas sobre a morte”, ele prosseguiu. “Quem, diante da
Garganta do Diabo, a um passo desse abismo cercado de rochas e água,
não pensa na morte? Eu dizia: ‘Esse abismo sem fundo, esse abismo
quase infinito não nos remete ao nosso destino comum?’. Eles me
olhavam com ar pensativo. Refletiam sobre minhas palavras, refletiam
sobre a vida e seu avesso: o silêncio eterno. Talvez refletissem
sobre o amor, nossa ansiada plenitude, ou sobre o vazio da vaidade.
E, enquanto eles pensavam em coisas ao mesmo tempo simples e
profundas, ouvíamos o barulho estrondoso da água caindo no abismo.”
Um escorpião saiu
de uma fresta das pedras e ficou parado, à espera de algo. Perguntei
a Yu Hu em que ele pensava.
“Eu?”, ele
disse, olhando o escorpião. “Eu também pensava no nosso destino.
Naquela época eu era um jovem guia de turismo que olhava o rosto de
jovens latino-americanos e pensava: estão todos perdidos? Estamos
todos à deriva? Perdidos ou à deriva, não importa… Estávamos
vivos, líamos e pensávamos muito, fazíamos perguntas sobre a nossa
vida, nossa história. Mas isso faz muito tempo, mais de trinta anos…
Na década de 1980, poucos queriam ouvir poemas. E hoje, já nem ouso
recitar um soneto de amor. Há uns seis meses, aqui mesmo em Posadas,
um turista me perguntou: ‘Yu Hu, você não gostaria de participar
do Facebook?’. Os outros turistas tiraram fotos do meu corpo diante
dessa parede de pedras. Enquanto riam e fotografavam, eu lhes dizia:
‘Não façam isso com esse velho inútil’. Acho que nem me
escutaram. Outro dia, quase por distração, quando citei um poema de
Borges, um brasileiro perguntou: ‘Borges, o centroavante do
Santos?’. Fiquei mudo, senti um ardor nos olhos, senti saudades
daqueles mochileiros da Garganta do Diabo, todos sabiam quem era
Jorge Luis Borges, quem era Augusto Roa Bastos, quem era o autor do
poema ‘Meditação sobre o Tietê’.”
A mão que segurava
o cantil descaiu. Yu Hu virou o corpo para a escola arruinada, ia
dizer alguma coisa, mas os turistas já estavam por ali. Seguravam
latas e garrafas e um deles pediu ao guia para que fossem embora.
Milton Hatoum,
in Um solitário à espreita
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