terça-feira, 5 de junho de 2018

Expressar-me da maneira mais rude

 

É de supor — disse eu — que Goethe não fosse assim na realidade, não tivesse este vaidoso ar de nobreza, esta majestade lançando olhares amáveis para os seus admiradores, este ar varonil de quem vive num mundo de encantadores sentimentalismos! Sem dúvida, poder-se-iam dizer muitas coisas contra ele; eu próprio muito teria de recriminar sua venerável pomposidade; mas, representá-lo assim, bem! já é ir longe demais.
A dona da casa serviu o café com uma expressão de profunda reprovação no olhar e deixou a sala, e logo o marido confessou-me, um tanto encabulado, que o retrato de Goethe pertencia à esposa e era considerado por ela uma de suas mais caras relíquias.
E mesmo que, objetivamente, o senhor tivesse razão, o que me permito duvidar, não devia ter-se expressado com tamanha franqueza.
O senhor tem razão — admiti. — Infelizmente, é um hábito, um vício que tenho, este de sempre expressar-me da maneira mais rude, coisa que o próprio Goethe costumava fazer em seus melhores momentos. Nesta reprodução amaneirada, Goethe certamente jamais se permitiria o uso de urna expressão crua, direta e autêntica. Peço-lhe mil perdões, ao senhor e à sua senhora; diga-lhe, por favor, que sou um esquizofrênico. E agora, se me permite, está na hora de retirar-me. A isso o confuso senhor opôs algumas objeções, voltando a recordar-me quanto tinham sido belas e emotivas nossas anteriores discussões e que minhas teorias a propósito de Mithras e Krishna Ine causaram naquele tempo uma profunda impressão; achava, pois, que hoje também seria a oportunidade.. etc. Agradeci-lhe e disse-lhe que tais palavras eram muito amáveis, mas que, infelizmente, meu interesse por Krishna, assim como meu gosto pelas conversas eruditas, haviam desaparecido por completo, e que além do mais, hoje, lhe havia mentido várias vezes; por exemplo, que não estava na cidade há apenas alguns dias, mas já há muitos meses; vivia, entretanto, só para mim e não me sentia mais apto a participar de reuniões familiares, primeiro porque estava sempre de mau humor e afetado pela gota, e segundo, por estar bêbado a maioria das vezes. Finalmente, para reabilitar-me e não passar por mentiroso, tive de declarar ao ilustre senhor que ele me havia ofendido muitíssimo. Corroborara a opinião contra Haller, veiculada por um estúpido militar desocupado e cabeça dura, expedida num jornaleco reacionário. Aquele indivíduo, o apátrida Haller, era eu mesmo; e melhor para o país e o mundo que ao menos um ou dois indivíduos capazes de pensar se inclinassem pela razão e a paz, do que levar cegamente os homens a uma nova guerra. E me levantei e me despedi de Goethe e do professor, apanhei no cabide as minhas coisas e saí correndo. O malvado lobo uivava dentro de mim. Os dois Harrys se atracaram numa cena. Compreendi depois claramente que aquela noitada tão pouco edificante tinha para mim muito mais importância do que para o indignado professor; para ele fora uma decepção e um pequeno escândalo; mas para mim foi um último fracasso e deserção; minha despedida do mundo burguês, moralista, erudito; uma vitória completa do lobo da estepe. E fora uma despedida de fugitivo e vencido, uma declaração de falência ante mim mesmo, uma despedida sem consolo, sem supremacia, sem humor. Eu me havia despedido de meu mundo de então e de minha pátria, da burguesia, dos costumes, da ciência, da mesma forma que um paciente de úlcera estomacal se despede do leitão assado. Furioso, corri sob a luz dos lampiões, furioso e com uma tristeza mortal. Que dia mais desconsolador, mais vergonhoso e miserável, desde a manhã até a noite, desde o cemitério até à cena na casa do professor! Por quê? Para quê? Haveria sentido em continuar sofrendo dias e mais dias assim, em continuar tragando tais sopas? Não! E assim sendo, aquela comédia tinha de acabar hoje mesmo. Vá para casa, Harry, e corte o pescoço! Chega de esperar! Corri pelas ruas de um lado para outro, impulsionado pela miséria. Naturalmente fora uma tolice de minha parte vituperar contra os adornos de salão daquela boa gente; fora tolo e grosseiro, mas não podia fazer outra coisa, não podia resistir àquela vida mansa, falsa, judiciosa. E como tampouco pudesse aguentar, ao que parece, a solidão, como minha própria sociedade me odiasse tão indizivelmente e me tivesse horror, afogado que estava no espaço sem ar de meu inferno, que saída me restava? Nenhuma. Pensei em meu pai e minha mãe, na sagrada chama de minha juventude há tanto tempo extinta, nos milhares de alegrias e afãs de minha vida. Nada me restava de tudo aquilo, nem sequer o arrependimento, somente o tédio e a dor. Nunca me havia causado tamanha pena o simples fato de viver como naquela hora. Numa afastada taberna de subúrbio descansei por uns momentos, bebendo água e conhaque, e depois continuei a correr, acicatado pelo diabo, indo pelas abruptas e tortuosas ruelas da cidade velha, pelas avenidas, até a praça da estação. “Viajar!” — pensei. Entrei na estação, consultei a lista dos trens pregada à parede, bebi um copo de vinho e tentei recobrar o ânimo.
Hermann Hesse, in O Lobo da Estepe

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