quinta-feira, 7 de junho de 2018

Esparadrapo

Aquele restaurante de bairro é do tipo simpatia/classe média. Fica em rua sossegada, é pequeno, limpo, cores repousantes, comida razoável, preços idem, não tem música de triturar os ouvidos. O dono senta-se à mesa da gente, para bater um papo leve, sem intimidades.
Meu relógio parou. Pergunto-lhe quantas horas são.
Estou sem relógio.
Então vou perguntar ao garçom. Ele também está sem relógio.
E o colega dele, que serve aquela mesa?
Ninguém está com relógio nesta casa.
Curioso. É moda nova?
Antes de responder, e se o senhor permite, vou lhe fazer, não propriamente um pedido, mas uma sugestão.
Pois não.
Não precisa trazer relógio quando vier jantar.
Não entendo.
Estamos sugerindo aos nossos fregueses que façam este pequeno sacrifício.
Mas o senhor podia explicar…
Sem querer meter o nariz no que não é da minha conta, gostaria também que trouxesse pouco dinheiro, ou antes, nenhum.
Agora é que não estou pegando mesmo nada.
Coma o que quiser, depois mandamos receber em sua casa.
Bem, eu moro ali adiante, mas e outros, os que nem se sabe onde moram, ou estão de passagem na cidade?
Dá-se um jeito.
Quer dizer que nem relógio nem dinheiro?
Nem joias. Estamos pedindo às senhoras que não venham de joia. É o mais difícil, mas algumas estão atendendo.
Hum, agora já sei.
Pois é. Isso mesmo. O amigo compreende…
Compreendo perfeitamente. Desculpe ter custado um pouco a entrar na jogada. Sou meio obtuso quando estou com fome.
Absolutamente. Até que o amigo compreendeu sem que eu precisasse dizer tudo. Muito bem.
Mas me diga uma coisa. Quando foi isso?
Quarta-feira passada.
E como foi, pode-se saber?
Como podia ser? Como nos outros lugares, no mesmo figurino. Só que em ponto menor.
Lógico, sua casa é pequena. Mas levaram o quê?
O que havia na caixa, pouquinha coisa. Eram nove da noite, dia meio parado.
Que mais?
Umas coisinhas, liquidificador, relógio de pulso, meu, dos empregados e dos fregueses.
Ahn. (Passei a mão no pulso, instintivamente.)
O pior foi o cofre.
Abriram o cofre?
Reviraram tudo, à procura do cofre. Ameaçaram, pintaram e bordaram. Foi muito desagradável.
E afinal?
Cansei de explicar a eles que não havia cofre, nunca houve, como é que eu podia inventar cofre naquela hora?
Ficaram decepcionados, imagino.
Não senhor. Disseram que tinha de haver cofre. Eram cinco, inclusive a moça de bota e revólver, querendo me convencer que tinha cofre escondido na parede, no teto, embaixo do piso, sei lá.
E o resultado?
Este — e baixou a cabeça, onde, no cocuruto, alvejava a estrela de esparadrapo.
Oh! Sinto muito. Não tinha notado. Felizmente escapou, é o que vale. Dê graças a Deus por estar vivo.
Já sei. Sabe que mais? Na polícia me perguntaram se eu tinha seguro contra roubo. E eu pensando que meu seguro fosse a polícia. Agora estou me segurando à minha maneira, deixando as coisas lá em casa e convidando os fregueses a fazer o mesmo. E vou comprar um cofre. Cofre pequeno, mas cofre.
Para quê, se não vai guardar dinheiro nele?
Para mostrar minha boa-fé, se eles voltarem. Abro imediatamente o cofre, e verão que não estou escondendo nada. Que lhe parece?
Que talvez o senhor precise manter um estoque de esparadrapo em seu restaurante.
Carlos Drummond de Andrade, in 70 historinhas

Nenhum comentário:

Postar um comentário