quinta-feira, 7 de junho de 2018

A propósito da neve úmida [1 - trecho]

Naquela época eu tinha apenas vinte e quatro anos. Já então minha vida era sombria e desordenada, eu era solitário como um bicho do mato. Não tinha amizades, até mesmo evitava falar com as pessoas, e cada vez me enfurnava mais no meu canto. Durante o trabalho na repartição, procurava inclusive não olhar para ninguém e percebia nitidamente que meus colegas não só me consideravam excêntrico como também – assim me parecia constantemente – olhavam-me com uma certa repulsa. Às vezes eu me perguntava: por que será que, além de mim, ninguém tem essa impressão de ser olhado com repulsa? Um dos nossos funcionários tinha um rosto repugnante, cheio de marcas de varíola, com um certo ar de salteador de estrada. Penso que eu não teria coragem de olhar para ninguém se tivesse uma cara indecente assim. Um outro tinha um uniforme de serviço tão surrado que já exalava ao seu redor um leve mau cheiro. Apesar disso, nenhum desses senhores sentia-se constrangido – nem por causa da roupa, nem do rosto, nem por algum motivo moral. Nem um o outro podiam imaginar que eram olhados com aversão; e, se imaginassem, para eles seria indiferente, desde que o chefe não notasse. Está inteiramente claro para mim agora que, devido à minha desmesurada vaidade e, consequentemente, à tremenda exigência para comigo mesmo, eu me olhava com uma insatisfação furiosa que chegava às raias da aversão e, com isso, mentalmente transferia aos outros essa maneira de me ver. Odiava, por exemplo, o meu rosto, achava-o detestável e até mesmo acreditava que ele expressava uma certa canalhice, por isso, sempre que estava na repartição, esforçava-me desesperadamente por demonstrar um comportamento o mais independente possível. “Que o meu rosto seja feio”, pensava, “mas que, em compensação, seja nobre, expressivo e, principalmente, extraordinariamente inteligente.” Mas eu sabia com dolorosa certeza que meu rosto jamais expressaria essas perfeições. E, o que era mais terrível, eu o achava positivamente idiota. Ficaria plenamente satisfeito com a inteligência. Aceitaria a expressão vil, desde que meu rosto parecesse terrivelmente inteligente.
Naturalmente, eu odiava todos os funcionários do departamento, do primeiro ao último; desprezava-os, mas, ao mesmo tempo, de certa forma eu os temia. Vez por outra até os colocava acima de mim. Essas alternâncias em mim eram súbitas: ora os desprezava, ora os colocava acima de mim. Um homem honrado e evoluído não pode ser vaidoso sem possuir uma exigência infinita para consigo mesmo e sem, em certos momentos, se desprezar até o ponto de se odiar. Mas, seja desprezando o outro, seja julgando-me inferior, eu baixava os olhos diante de quase todas as pessoas com quem cruzava. Cheguei a fazer experiências para ver se aguentaria o olhar de alguém sobre mim. Sempre era eu o primeiro a baixar os olhos. Isso me torturava a ponto de me deixar furioso. Era doentio também o meu temor de parecer ridículo; por isso, adorava servilmente a rotina em relação a tudo o que era exterior. Entregava-me com amor à medianidade geral e com toda a alma temia qualquer sinal de excentricidade em mim. Mas como eu poderia ter resistido? Eu era evoluído de uma maneira doentia, como deve ser o homem evoluído do nosso tempo. Já eles, eram todos obtusos e parecidos uns com os outros, como um rebanho de carneiros. Talvez somente eu, em toda a repartição, tivesse permanentemente aquela impressão de que era covarde e servil, e isso se dava justamente porque eu tinha cultura. Mas não era apenas questão de parecer: de fato, eu era um covarde e um escravo. Digo isso sem nenhum constrangimento. Todo homem honesto neste nosso tempo é e deve ser um covarde e um escravo. Essa é a sua condição normal. Estou profundamente convencido disso. Ele foi feito assim e para isso foi construído. E não é só no tempo presente, por causa de algumas circunstâncias eventuais, mas, em geral, em todos os tempos o homem honesto deve ser covarde e escravo. É uma lei natural para todos os homens honestos na Terra. E se acontece de algum deles se mostrar valente perante alguma coisa, isso não deve ser motivo de consolo ou de entusiasmo: fatalmente ele irá se acovardar diante de outras circunstâncias. Essa é a única e eterna conclusão. Bancam os valentes apenas os asnos e suas aberrações, e mesmo estes só até um determinado obstáculo. Nem vale a pena prestar atenção neles, pois nada significam.
Havia ainda naquela época outra circunstância que me torturava: precisamente o fato de que ninguém se parecia comigo e eu não era parecido com ninguém. “Eu sou único e eles são todos”, pensava eu.
Daí se vê que eu ainda era inteiramente criança.
Também ocorria o contrário. Em algumas ocasiões, era tão horrível para mim ir à repartição que eu chegava ao ponto de, muitas vezes, voltar doente do trabalho. Mas, de repente, sem mais nem menos, começava uma fase de ceticismo e indiferença (comigo tudo acontecia em fases), e eu mesmo começava a rir de minha intolerância e minhas aversões e censurava a mim mesmo pelo meu romantismo. Num determinado momento, não queria falar com ninguém; em outro, não só procurava conversa com alguém, como até mesmo decidia tornar-me seu amigo. De repente, sem mais nem menos, toda a aversão desaparecia. Quem sabe ela nunca tivesse existido realmente em mim, e fosse apenas pose tirada dos livros? Até agora não solucionei essa questão. Certa vez eu cheguei a fazer algumas amizades, comecei a frequentar suas casas, a jogar cartas, a beber vodca e a conversar sobre nossa economia... Neste ponto, porém, permitam-me fazer um parêntese.
Em geral nós, russos, nunca tivemos autores românticos bobos, daqueles que pairam acima das estrelas, como os alemães e, particularmente, os franceses, a quem nada pode atingir, mesmo que a terra trema sob seus pés, mesmo que toda a França esteja morrendo nas barricadas – eles continuam os mesmos, não mudam nem por decoro e vão seguir cantando seus cantos siderais até, por assim dizer, o fim da vida, porque são tolos. Já aqui, na terra russa, não há tolos; é um fato conhecido; essa é a nossa diferença em relação às outras terras estrangeiras. Consequentemente, não surgem aqui naturezas etéreas em sua forma pura. Como sempre, foram nossos publicistas e críticos “positivos” que, na sua época, na caça aos Kostanjoglos e tios Piotr Ivânovitch, considerando-os, por burrice, nosso ideal, inventaram muita coisa sobre nossos românticos, julgando-os tão etéreos quanto os da Alemanha e da França. Ao contrário, as características do nosso romântico se opõem completa e frontalmente às dos europeus siderais, e nenhum criteriozinho europeu de avaliação é adequado para ele. (Permitam-me usar essa palavra: “romântico” – palavrinha antiga, respeitável, digna e conhecida de todos.) As características do nosso romântico são: compreender tudo, ver tudo e, frequentemente, enxergar muito mais claramente do que as nossas inteligências mais positivas; não se resignar diante de nada ou de ninguém, mas, ao mesmo tempo, nada menosprezar, tudo contornar, ceder a tudo, comportar-se com todos de maneira política; nunca perder de vista um objetivo prático, útil (como algum apartamentinho do governo, uma pensãozinha, uma condecoraçãozinha), e ter em mira esse objetivo em todo entusiasmo e em todos os volumezinhos de versinhos líricos e, ao mesmo tempo, conservar incólume em si o “belo e sublime”, até o túmulo, e, a propósito, conservar a si mesmo embrulhado em algodão, como uma joiazinha, nem que seja, por exemplo, em prol do mesmo “belo e sublime”. Vive à larga o nosso romântico, e é o maior dos espertalhões, asseguro-lhes... até mesmo por experiência própria. Isso, é claro, se o romântico for inteligente. Mas que estou dizendo? O romântico é sempre inteligente, eu apenas queria observar que, ainda que entre nós tenha havido românticos tolos, isso não deve ser levado em conta, e apenas porque eles, ainda na flor da idade, transformaram-se definitivamente em alemães, a fim de conservarem mais confortavelmente sua joiazinha, e fixaram residência lá em algum lugar, a maioria em Weimar ou na Floresta Negra. Eu, por exemplo, desprezava profundamente meu trabalho e apenas por necessidade não o mandava às favas, porque ficava lá sentado e recebia dinheiro por isso. E o resultado – notem bem – era que, apesar de tudo, não o mandava às favas. Nosso romântico preferiria enlouquecer (o que, aliás, raramente ocorre), porém não mandaria seu emprego às favas se não tivesse outra carreira em vista, e ele não seria posto na rua aos trancos, antes o colocariam no hospício se ele se julgasse “o rei da Espanha”, e isso se ele estivesse muito louco mesmo. Mas aqui só enlouquecem os magrinhos e lourinhos... Já um número incalculável de românticos ascende aos cargos mais elevados. Que versatilidade fora do comum eles têm! E que talento para sensações as mais contraditórias! Já naquela época consolava-me com isso e continuo com a mesma opinião. É por causa disso que temos tantos “espíritos magnânimos”, que até no último degrau de sua queda nunca perdem seu ideal e, mesmo que não movam um dedo por seu ideal, mesmo que sejam bandidos e ladrões declarados, respeitam até às lágrimas seu primeiro ideal e são, no fundo de sua alma, extraordinariamente honestos. É, senhores, somente entre nós o mais rematado canalha pode ser inteiramente honesto de alma, e isso até mesmo de maneira sublime, sem, por isso, deixar de ser um canalha um pouquinho que seja. Repito: constantemente entre nossos românticos surgem velhacos tão hábeis nos negócios (utilizo com amor a palavra “velhacos”), e que demonstram tamanho senso da realidade e conhecimento do que é positivo, que as autoridades e o público, perplexos e paralisados, apenas estalam a língua em sua direção.
A versatilidade é verdadeiramente espantosa, e sabe Deus em que ela pode se transformar, como se desenvolverá nas circunstâncias futuras e o que promete a seguir. E o material até que não é ruim! Não falo isso por alguma patriotice ridícula. Aliás, tenho certeza de que passou novamente pela cabeça dos senhores que estou gracejando. Mas quem sabe? Talvez seja o contrário, talvez os senhores acreditem que eu realmente penso assim. De qualquer maneira, vou considerar uma honra para mim e um particular prazer ambas as opiniões dos senhores. Quanto ao meu parêntese, peço que me perdoem.
Com meus colegas, naturalmente eu não tinha amizade e em pouco tempo mandava-os às favas e, em consequência de minha inexperiência e pouca idade, até parava de cumprimentá-los, rompendo com eles. Isso, aliás, aconteceu comigo apenas uma vez; em geral, eu estava sempre só.
Dostoievski, in Notas do subsolo

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