sexta-feira, 15 de junho de 2018

Dona Clara

Dona Clara era uma velhinha de 95 anos, lá em Minas. Vivia uma religiosidade mansa, sem culpas ou medos. Na cama, cega, a filha lhe lia a Bíblia. De repente, ela fez um gesto, interrompendo a leitura. O que ela tinha a dizer era infinitamente mais importante. “Minha filha, sei que minha hora está chegando... Mas, que pena! A vida é tão boa...”
Eram seis da manhã. Minha filha me acordou. Ela tinha três anos. Fez-me então a pergunta que eu nunca imaginara: “Papai, quando você morrer você vai sentir saudades?”. Emudeci. Não sabia o que dizer. Ela entendeu e veio em meu socorro: “Não chore que eu vou te abraçar...”. Ela, menina de três anos, sabia que a morte é onde mora a saudade porque lá a gente fica longe dessa terra tão boa...
Eu, por enquanto, não quero morrer. Já tive medo de morrer. Hoje não tenho mais. O que sinto é uma enorme tristeza.
Mas tenho muito medo DO morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer porque já não sou mais dono de mim mesmo, solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha morte, medo de que a passagem seja demorada.
A morte deveria ser como os últimos compassos de uma sonata: belos e tristes, até que venha o silêncio. Camus dizia que o suicida prepara seu suicídio como uma obra de arte. Seria possível planejar a própria morte, sem suicídio, como uma obra de arte? Mas quem, nos hospitais, se preocupa com a beleza?
Zorba morreu olhando para as montanhas. Uma amiga me disse que quer morrer olhando para o mar. Montanhas e mar: haverá metáforas mais belas para o Grande Mistério?
Mas a medicina não entende.
Um amigo contou-me dos últimos dias do seu pai, já bem velho. As dores eram terríveis. Dirigiu-se, então, ao médico: “O senhor não poderia aumentar a dose dos analgésicos para que meu pai não sofra?”. O médico o olhou com olhar severo e lhe disse: “O senhor está sugerindo que eu pratique a eutanásia?”. Impecável o médico, na sua severidade ética e religiosa. Enquanto sua consciência permanecia calma, o velhinho estava mergulhado num abismo de dor.
Um outro velhinho querido, 92 anos, cego, surdo, todos os esfíncteres sem controle, numa cama, em meio aos fedores de fezes e urina — de repente, o acontecimento desejado, libertador: seu coração parou. Ah, com certeza fora o seu Anjo da Guarda que assim punha um fim à sua miséria! Aquela parada cardíaca era o último acorde da sonata alegre que fora a sua vida! Mas o médico, movido pelos automatismos éticos costumeiros, apressou-se a cumprir o seu dever: debruçou-se sobre o velhinho morto e o fez viver de novo.
Dir-me-ão que é dever dos médicos fazer todo o possível para que a vida continue. Mas o que é vida? Mais precisamente: o que é a vida de um ser humano? Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria. Morta a possibilidade de sentir alegria ou gozar a beleza, o corpo se transforma numa casca de cigarra vazia.
Muitos dos chamados “recursos heroicos” para manter vivo um paciente são, do meu ponto de vista, uma violência ao princípio da “reverência pela vida”. Porque, se os médicos dessem ouvidos ao pedido que a vida está fazendo, eles a ouviriam dizer: “Sou um pássaro engaiolado. Abram a porta! Deixem-me voar livre pelos ares!”.
Rubem Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

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