segunda-feira, 4 de junho de 2018

Civilizando Huck - Capítulo 1

Civilizando Huck – Moisés e os “Caras dos Papiros” – Srta. Watson – Tom Sawyer à espera
Cenário: Vale do Mississippi
Tempo: De quarenta a cinquenta anos atrás

Você não sabe nada de mim se não leu um livro com o nome As aventuras de Tom Sawyer, mas pouco importa. Esse livro foi feito pelo senhor Mark Twain, e ele falou a verdade, no mais das vezes. Teve coisas que ele exagerou, mas no mais das vezes ele falou a verdade. Isso não é nada. Nunca vi ninguém que não mentisse uma vez ou outra, a não ser a tia Polly, ou a viúva, ou talvez Mary. A tia Polly – a tia Polly de Tom – e Mary e a Viúva Douglas todas aparecem nesse livro, que é em geral um livro verdadeiro, com alguns exageros, como eu disse antes.
Agora o jeito como o livro acaba é o seguinte: Tom e eu encontramos o dinheiro que os ladrões esconderam na caverna, e isso nos deixou ricos. Ganhamos seis mil dólares cada um – tudo ouro. Uma visão tremenda de dinheiro quando foi empilhado. Bem, o juiz Thatcher ele pegou o dinheiro e guardou rendendo juros, e isso nos dava um dólar por dia pra cada um durante todo o ano – mais do que alguém ia saber o que fazer com ele. A Viúva Douglas ela me pegou pra filho e declarou que ia me civilizar, mas era duro viver na casa o tempo todo, considerando a tristeza de como a viúva era cheia de regras e decente em todos os seus modos. E assim, quando não consegui aguentar mais, dei o fora. Me meti de novo nos meus velhos trapos e no meu barril de açúcar, e fiquei livre e satisfeito. Mas Tom Sawyer me caçou e disse que ia fundar um bando de assaltantes e que eu só podia entrar no grupo voltando pra viúva e sendo respeitável. Assim voltei.
A viúva chorou por mim, me chamou de pobre cordeiro perdido e também me chamou de uma porção de outros nomes, mas nunca teve a intenção de me ofender com isso. Ela me meteu de novo naquelas roupas novas, e eu não podia fazer nada, só suar e suar, e me sentir todo apertado. Bem, então, a velha história começou de novo. A viúva tocava um sino para o jantar, e ocê tinha que chegar na hora. Quando ocê ia pra mesa, não podia começar logo a comer, mas tinha que esperar a viúva baixar a cabeça e resmungar um pouco sobre a comida, apesar de não ter realmente nada de errado com ela – isto é, nada só que tudo era cozido separado. Num barril de restos é diferente, as coisas se misturam e o suco meio que gira com força ali dentro, e a coisa fica mais gostosa.
Depois do jantar ela pegava seu livro e me ensinava sobre Moisés e os caras dos Papiros, e eu tava doido pra saber tudo sobre ele, mas aos poucos ela deixou escapar que já fazia um bom tempo que Moisés tava morto, assim não dei mais bola, porque não me interesso por mortos.
Pouco depois eu quis fumar e pedi licença pra viúva. Mas ela não quis saber. Disse que era um hábito ruim e não era limpo e que eu devia tentar não fazer mais aquilo. É assim com algumas pessoas. Elas pegam birra com alguma coisa mesmo sem saber nada sobre a coisa. Ela ficava se preocupando com Moisés, que não era parente dela, não tinha valor pra ninguém, já morto, entende, mas descobrindo uma falha enorme em mim porque eu fazia uma coisa que tinha alguma serventia. E ela cheirava rapé também, claro que isso nada tinha de errado, porque era ela que fazia.
Sua irmã, a senhorita Watson, uma solteirona muito magra, de óculos, veio morar com ela e me chamou pra sentar ao seu lado com uma cartilha. Ela me fez dar mais ou menos duro por uma hora, e então a viúva mandou ela maneirar. Eu não aguentava mais. Então, durante uma hora foi um tédio mortal e eu tava nervoso. A senhorita Watson dizia: “Não põe os pés aí em cima, Huckleberry” e “Não fica encolhido desse jeito, Huckleberry – senta direito”; e logo depois ela dizia: “Não fica de boca aberta e atirado assim, Huckleberry – por que você não tenta se comportar?”. Então ela me contou tudo sobre o lugar ruim, e eu disse que queria ir pra lá. Ela ficou brava, mas eu não fiz por mal. Tudo o que eu queria era ir pra algum lugar; tudo o que eu queria era uma mudança, qualquer uma. Ela disse que era malvadeza dizer o que eu disse; falou que não dizia isso por nada neste mundo; ela ia viver de um certo jeito pra ir pro lugar bom. Bem, eu não via nenhuma vantagem em ir pra onde ela tava indo, então decidi que não ia me esforçar pra isso. Mas não falei nada, porque isso ia provocar encrenca e não ia me fazer bem nenhum.
Agora que tinha começado, ela continuou e me contou tudo sobre o lugar bom. Disse que tudo que alguém tinha que fazer lá era andar à toa o dia inteiro com uma harpa e cantar pra todo o sempre. Não achei muito interessante. Mas não disse nada. Perguntei se ela achava que Tom Sawyer ia pra lá, e ela disse que não, de jeito nenhum. Fiquei contente com isso, porque eu queria nós dois juntos.
A senhorita Watson, ela continuou a me amolar, e tudo ficou aborrecido e solitário. Dali a pouco elas mandaram buscar os negros pra dentro da casa, e fizemos orações, depois todo mundo saiu pra ir dormir. Subi pro meu quarto com um pedaço de vela e coloquei a vela sobre a mesa. Então me sentei numa cadeira perto da janela e tentei pensar em alguma coisa alegre, mas não adiantava. Eu tava me sentindo tão só que o que eu mais queria era tá morto. As estrelas brilhavam e as folhas faziam um ruído muito triste na mata; e escutei uma coruja, bem longe, piando por alguém que tava morto, e um noitibó e um cachorro berrando por alguém que ia morrer; e o vento tava tentando me sussurrar alguma coisa, eu não conseguia descobrir o que era, e assim senti calafrios por todo o corpo. Depois lá longe na mata ouvi aquela espécie de som que um fantasma faz quando quer dizer algo que tem na cabeça e não consegue se fazer entender, e por isso não pode ficar quieto no seu túmulo, tem que andar por aí a noite toda, lamentando. Fiquei tão abatido e assustado que desejei muito uma companhia. Aí uma aranha começou a subir pelo meu ombro, e eu dei um piparote, e ela caiu sobre a vela e, antes de eu poder me mexer, já tava toda engrouvinhada. Eu não precisava de ninguém pra me dizer que isso era um terrível mau sinal e que ia me trazer bastante azar, então fiquei com medo e quase arranquei a roupa. Me levantei e andei pelo quarto voltando sobre os meus passos umas três vezes e fiz o sinal da cruz no meu peito a cada vez e depois atei um pequeno anel do meu cabelo com um fio pra manter as bruxas bem longe. Mas não me sentia confiante. É o que a gente faz quando perde uma ferradura que achou em algum lugar, em vez de pregar ela sobre a porta, mas nunca tinha ouvido ninguém dizer que era um jeito de afastar o azar quando alguém mata uma aranha.
Sentei de novo, tremendo todo, e tirei o meu cachimbo pra fumar, pois a casa tava num silêncio mortal agora, e assim a viúva não ia ficar sabendo. Bem, depois de muito tempo escutei o relógio bem longe na cidade fazer bum-bum-bum – doze badaladas; e tudo em silêncio de novo – mais quieto do que nunca. Então escutei um galhinho estalar no escuro entre as árvores – alguma coisa tava se mexendo. Fiquei sentado quieto e prestei atenção. Mal consegui ouvir um “eu-aqui! eu-aqui!” ali fora. Um bom sinal! Disse “eu-aqui! eu-aqui!” tão baixinho quanto pude, e depois apaguei a luz e me arrastei pra fora da janela sobre o telheiro. Então escorreguei pro chão e, pelas barbas do profeta, ali tava Tom Sawyer esperando por mim.
Mark Twain, in As Aventuras de Huckleberry Finn

Nenhum comentário:

Postar um comentário