terça-feira, 12 de junho de 2018

Capítulo 2 - Os meninos escapam de Jim – Jim! – O bando de Tom Sawyer – Planos muito bem traçados

Andamos na ponta dos pés por um caminho entre as árvores que ia na direção do final do jardim da viúva, nos abaixando pros galhos não arranharem as nossas cabeças. Quando a gente tava passando pela cozinha, tropecei numa raiz e fiz um barulho. Nos agachamos e ficamos quietos. O negro grande da srta. Watson, chamado Jim, tava sentado na porta da cozinha; dava pra ver bem claro, porque tinha uma luz atrás dele. Ele se levantou e espichou o pescoço um minuto, escutando. Depois diz:
Quem taí?
Escutou mais um pouco; depois desceu na ponta dos pés e ficou bem entre nós dois; a gente quase podia tocar nele. Bem, é muito provável que se passaram minutos e minutos sem nenhum ruído, e a gente tava todo mundo bem junto. O meu tornozelo começou a comichar, mas não cocei; então a minha orelha começou a comichar; e depois as minhas costas, bem entre os ombros. A impressão é que eu ia morrer, se não coçava. Bem, vi muito isso desde então. Se ocê tá com gente fina, ou num funeral, ou tentando dormir quando não tem sono – se ocê tá em qualquer lugar onde não dá pra coçar, ora, aí ocê vai sentir coceira por toda a parte em mais de mil lugares. Pouco depois Jim diz:
Fala, quem é ocê? Droga, se num ouvi uma coisa. Bem, sei o que eu vô fazê: vô me sentá aqui e escutá até ouvi essa coisa de novo.
Assim ele sentou no chão entre eu e Tom. Encostou numa árvore e espichou as pernas até que uma delas quase tocou numa das minhas. Meu nariz começou a comichar. Comichou até que as lágrimas encheram os meus olhos. Mas não cocei. Depois começou a comichar por dentro. Aí passou a comichar embaixo. Eu não sabia o que fazer pra ficar sem me mexer. Essa desgraça continuou seis ou sete minutos, mas pareceu bem mais do que isso. Eu sentia coceiras em onze lugares diferentes agora. Calculei que não podia aguentar mais que um minuto, mas apertei os dentes e me preparei pra tentar. Bem nessa hora Jim começou a respirar forte, então começou a roncar – e logo eu tava confortável de novo.
Tom, ele me fez um sinal – um barulhinho com a boca – e a gente saiu se arrastando de quatro. Quando a gente tinha andado uns três metros, Tom sussurrou pra mim, ele queria amarrar Jim na árvore de brincadeira. Mas eu disse não, ele podia acordar e fazer um tumulto, então iam descobrir que eu não tava em casa. Tom disse que não tinha vela suficiente e que ele ia se enfiar na cozinha e pegar mais algumas. Eu não queria saber dele tentar pegar as velas. Disse que Jim podia acordar e vir atrás da gente. Mas Tom quis arriscar; então a gente se enfiou ali e pegou três velas, e Tom deixou cinco centavos na mesa como pagamento. Depois a gente saiu, e eu tava doido pra ir embora, mas nada fez Tom abandonar o plano de se arrastar de quatro até onde Jim tava pra jogar alguma coisa nele. Eu esperei, e pareceu um bom tempo, tudo tava tão quieto e solitário.
Assim que Tom voltou, a gente seguiu pelo atalho, ao redor da cerca do jardim, e em pouco tempo chegou ao topo íngreme do morro no outro lado da casa. Tom disse que tirou o chapéu da cabeça de Jim e dependurou num ramo bem no alto, e Jim se mexeu um pouco, mas não acordou. Mais tarde Jim disse que foi enfeitiçado pelas bruxas, que elas puseram ele num transe e carregaram ele por todo o estado, e que depois colocaram ele embaixo das árvores de novo e dependuraram o chapéu dele num ramo pra mostrar quem tinha feito o truque. E na vez seguinte que Jim contou a história, ele disse que foi levado até Nova Orleans; e, depois disso, toda vez que contava a história ele aumentava mais e mais, até que daí a pouco ele disse que elas levaram ele pelo mundo inteiro e deixaram ele morto de cansaço, com o traseiro todo coberto de furúnculos da sela. Jim tinha um orgulho enorme da história, e ele ficou de um jeito que nem olhava mais pros outros negros. Os negros andavam quilômetros pra ouvir Jim contar a história, e ele era mais admirado que qualquer outro negro naquela região. Os negros estranhos ficavam de boca aberta e olhavam Jim por todos os lados, igualzinho como se ele fosse um milagre. Os negros tavam sempre falando de bruxas no escuro perto do fogo da cozinha, mas sempre quando alguém falava e fingia saber tudo sobre essas coisas, acontecia que Jim entrava e dizia: “Hum! O que ocê sabe das bruxa?” e o tal do negro calava a boca e tinha que sentar bem lá no fundo. Jim sempre usava uma grande moeda de cinco centavos pendurada no pescoço por um cordão e dizia que era um amuleto que o diabo tinha dado pra ele com as próprias mãos e declarado que ele podia curar qualquer pessoa com aquilo, invocar as bruxas sempre que queria, só falando alguma coisa pra moeda, mas ele nunca disse o que era que ele falava. Os negros vinham de toda parte e davam a Jim qualquer coisa que tinham só pra dar uma olhada naquela moeda de cinco centavos, mas eles não tocavam, porque o diabo tinha colocado as mãos nela. Jim tava muito estragado como criado e acabou ficando insolente porque viu o diabo e foi carregado pelas bruxas.
Bem, quando Tom e eu chegamos bem no topo do morro, a gente olhou pra vila embaixo e conseguiu ver três ou quatro luzes piscando, onde morava gente doente, talvez; e as estrelas em cima de nós tavam cintilando muito bonitas; e lá embaixo ao lado da vila tava o rio, um quilômetro inteiro de largura, terrível de tão quieto e enorme. A gente desceu o morro e encontrou Jo Harper e Ben Rogers, e mais dois ou três dos meninos, escondidos no velho curtume. Aí a gente desatou um bote e remou pelo rio uns quatro quilômetros até o grande penhasco na encosta e foi pra margem.
A gente caminhou até uma moita de arbustos e Tom fez todo mundo jurar que ia guardar segredo, e ele então mostrou um buraco no morro, bem na parte mais densa dos arbustos. A gente acendeu as velas e se arrastou de quatro pelo chão. Andamos uns duzentos metros e aí a caverna se abriu. Tom cutucou as passagens e logo se abaixou ao pé de uma parede onde ninguém ia notar que tinha um buraco. A gente enveredou por um lugar estreito e entrou numa espécie de sala, toda úmida, viscosa e fria, e ali paramos. Tom diz:
Agora vamos fundar um bando de assaltantes e dar o nome de Bando de Tom Sawyer. Todos os que querem participar têm que fazer um juramento e escrever o nome com sangue.
Todo mundo queria participar. Então Tom tirou do bolso uma folha de papel em que tinha escrito o juramento e leu em voz alta. Obrigava todo menino a jurar que não ia abandonar o bando e que nunca ia contar pra ninguém nenhum dos segredos; se alguém fizesse alguma coisa com qualquer garoto do bando, o menino que recebia a ordem de matar aquela pessoa e a sua família devia cumprir a ordem, e ele não devia comer nem dormir até matar todos e marcar uma cruz no peito de cada um com uma faca, que era o sinal do bando. E ninguém fora do bando podia usar aquela marca e, se usava, devia ser processado; e se fazia de novo, devia ser morto. E se alguém que pertencia ao bando contava os segredos, devia ter a garganta cortada, depois a sua carcaça devia ser queimada e as cinzas espalhadas por toda parte, e o seu nome era apagado da lista com sangue e nunca mais mencionado pelo bando, amaldiçoado com uma praga e esquecido pra sempre.
Todo mundo disse que era um juramento muito bonito, e os meninos perguntaram a Tom se ele tinha tirado as palavras da própria cabeça. Ele disse que parte das palavras, mas o resto era tirado de livros de piratas e livros de assaltantes, e todo bando de valor tinha um juramento.
Alguns acharam que era bom matar as famílias dos meninos que contavam os segredos. Tom disse que era uma boa ideia, então ele pegou o lápis e escreveu no papel. Então Ben Rogers diz:
E Huck Finn, ele não tem família, o que vamos fazer com ele?
Bem, ele não tem pai? – diz Tom Sawyer.
Sim, ele tem pai, mas agora ninguém sabe do pai dele. Ele deitava bêbado com os porcos no curtume, mas já faz um ano ou mais que não aparece por ali.
Eles ficaram falando e iam me tirar do bando, porque diziam que todo menino devia ter uma família ou alguém pra matar, senão não ia ser justo com os outros. Bem, ninguém conseguia pensar em nada pra fazer – todo mundo tava aturdido e quieto. Eu tava a ponto de chorar, mas de repente tive uma ideia e ofereci a srta. Watson – eles podiam matar a senhorita. Todo mundo disse:
Oh, ela serve. Tudo bem. O Huck pode entrar.
Então todos enfiaram um alfinete no dedo pra tirar sangue pra assinar o juramento, e eu deixei a minha marca no papel.
Então – diz Ben Rogers –, qual é a linha de negócios deste bando?
Só assalto e assassinato – disse Tom.
Mas quem nós vamos assaltar? Casas, ou gado, ou...
Bobagem! Roubar gado e essas coisas não é assalto, é arrombamento – diz Tom Sawyer. – Não somos arrombadores. Isso não tem graça. Somos assaltantes de estrada. A gente para as diligências e as carroças na estrada, com máscara no rosto, e a gente mata as pessoas e pega os seus relógios e dinheiro.
Temos sempre que matar as pessoas?
Oh, claro. É melhor. Algumas autoridades acham diferente, mas em geral é considerado melhor matar as pessoas. A não ser algumas que trazemos pra caverna aqui e mantemos presas até serem resgatadas.
Resgatadas? O que é isso?
Não sei. Mas é o que eles fazem. Li em livros, então é claro que é isso o que temos que fazer.
Mas como vamos fazer se não sabemos o que é?
Ora, dane-se, temos que fazer. Eu não falei que tá nos livros? Ocê quer fazer diferente do que tá nos livros e embaralhar tudo?
Oh, é muito fácil falar, Tom Sawyer, mas como diabos é que esses sujeitos vão ser resgatados se não sabemos o que fazer? É isso o que quero dizer. Agora, o que ocê acha que é?
Bem, não sei. Mas talvez, se deixamos eles presos até serem resgatados, isso significa que deixamos eles presos até serem mortos.
Ora, já é alguma coisa. Dá pra entender. Por que não falou isso antes? Vamos deixar os caras presos até que são resgatados pra morte. E vai ser um grupo muito chato também, comendo tudo e sempre tentando fugir.
Como ocê fala, Ben Rogers! Como é que eles podem fugir, se vai ter um guarda vigiando os caras, pronto pra fuzilar quem tentar qualquer coisa?
Um guarda! Ora, essa é boa. Assim alguém vai ter que ficar acordado a noite inteira sem dormir, só pra vigiar os caras. Acho que é bobagem. Por que alguém não pega um pedaço de pau e resgata os caras assim que chegam aqui?
Porque não é assim que tá nos livros. É por isso. Agora, Ben Rogers, ocê quer fazer as coisas como manda a regra ou não? Essa é a ideia. Não acha que as pessoas que fizeram os livros sabem qual é a coisa certa pra fazer? Acha que ocê pode ensinar alguma coisa pra elas? De maneira nenhuma. Não, senhor, vamos continuar e resgatar os caras como manda a regra.
Tudo bem, não me importo. Mas digo que é bobagem, de qualquer modo. Diz uma coisa, vamos matar as mulheres também?
Olha, Ben Rogers, se eu sou tão ignorante como ocê, não ia deixar ninguém perceber. Matar as mulheres? Não, ninguém nunca viu nada disso nos livros. Ocê traz as mulheres pra caverna e trata todas sempre com um jeito polido e doce, e aí elas se apaixonam por ocê, e nunca mais vão querer ir pra casa.
Bem, se é assim, tô de acordo, mas não faço fé nisso. Logo, logo vamos ter a caverna tão cheia de mulheres e de sujeitos esperando ser resgatados que não vai ter lugar pros assaltantes. Mas vai em frente, não tenho nada a dizer.
O pequeno Tommy Barnes agora tava adormecido e, quando foi acordado, ficou assustado e chorou, e disse que queria ir pra casa pra ver a mamãe, que não queria mais ser assaltante.
Aí todos zombaram dele e chamaram ele de bebê chorão, e isso enfureceu o pequeno, e ele disse que ia direto pra casa contar todos os segredos. Mas Tom deu cinco centavos pra ele ficar quieto e disse que todos nós tínhamos que ir pra casa e nos encontrar na próxima semana, pra assaltar alguém e matar algumas pessoas.
Ben Rogers disse que não podia sair muito, só nos domingos, então ele queria começar no próximo domingo, mas todos os meninos disseram que era maldade fazer essas coisas no domingo, e isso decidiu a questão. Concordaram em se reunir e marcar um dia assim que possível, e depois elegemos Tom Sawyer primeiro-capitão e Jo Harper segundo-capitão do bando, e fomos pra casa.
Eu subi no telheiro e entrei sorrateiro pela janela antes do dia amanhecer. As minhas roupas novas tavam todas sujas de graxa e poeira, e eu tava morto de cansado.
Mark Twain, in As Aventuras de Huckleberry Finn

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