terça-feira, 5 de junho de 2018

A barata romântica

Ivone contou que tinha ido morar na Alemanha por causa de um inseto.
Um inseto?”
Sim, um simples inseto”, disse Ivone. “Quando surgiu a barata, meu chefe ficou em pânico. Durante uma reunião em São Paulo, uma barata sobrevivente da última faxina rodopiou no meio da sala. Era uma barata cascuda, cosmopolita, e estava zonza. Só dei importância à barata quando meu chefe se levantou da cadeira, alarmado pela visão do inseto asqueroso. Quer dizer, asqueroso para ele, não para mim.”
Também detesto baratas cascudas, cosmopolitas ou provincianas”, eu disse.
São seres inofensivos”, protestou Ivone. “E não mentem nem matam que nem os homens. Além disso, uma personagem de Clarice usou uma barata para comungar. É o máximo da transgressão e da transcendência.”
Sem digressões literárias, Ivone. Vamos à barata: o que você fez?”
Tentei tirar o inseto da sala, mas sem machucar o bichinho. Enquanto afastava a barata até a porta, meu chefe dizia: ‘Pise nela, esmague…’. E, quando ela sumiu, voltei à cadeira e disse: ‘Já foi embora, dr. Klaus’.
Ele ajeitou a gravata, se recompôs, sentou e enxugou o suor com um lenço de seda. Estava pálido, bebeu água e observou o chão. Para reanimá-lo, informei que as vendas da empresa tinham aumentado e entreguei-lhe o último relatório. Sorriu pela primeira vez. E eu comecei a rir…
“‘É pra rir mesmo, disse o dr. Klaus. Rir e comemorar.’
Eu ria e mexia os ombros, como se estivesse dançando; as cócegas nas minhas costas não paravam, subiam e desciam…
“‘Você está muito mais animada do que eu, disse meu chefe.’
“‘Mas o senhor não tem uma barata nas suas costas, eu disse.’
“‘Como…?’, ele gritou, assustado. ‘Como ela foi parar nas suas costas?’
“‘As artimanhas das baratas são incríveis’, eu disse.
“‘Então tire essa barata do seu corpo’, disse o dr. Klaus, nervoso.
O que eu fiz? Tirei a blusa, encontrei a barata, fui até a janela e joguei-a no espaço. Era voadora, de asas potentes. Voltei à mesa e, quando me sentei, reparei no rosto vermelho do chefe, que me olhava com admiração. Quer dizer, naquele momento não sabia dizer se era admiração ou outra coisa. Eu estava de sutiã, com a blusa no meu colo. Vesti lentamente a blusa e ficamos em silêncio, um olhando para o outro. Enquanto ele bebia água, não tirava os olhos da minha blusa. Depois encerrou a reunião. Cinco meses depois casei com Klaus Schabe e fomos morar em Hamburgo, sede da empresa alemã.”
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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