Arte de Shanina Conway
DESPOJAMENTO
O
cavalo é nu.
FALSA
DOMESTICAÇÃO
O
que é cavalo? É liberdade tão indomável que se torna inútil
aprisioná-lo para que sirva ao homem: deixa-se domesticar mas com um
simples movimento de safanão rebelde de cabeça – sacudindo a
crina como a uma solta cabeleira – mostra que sua íntima natureza
é sempre bravia e límpida e livre.
FORMA
A
forma do cavalo representa o que há de melhor no ser humano. Tenho
um cavalo dentro de mim que raramente se exprime. Mas quando vejo
outro cavalo então o meu se expressa. Sua forma fala. DOÇURA
O
que é que faz o cavalo ser de brilhante cetim? É a doçura de quem
assumiu a vida e seu arco-íris. Essa doçura se objetiva no pelo
macio que deixa adivinhar os elásticos músculos ágeis e
controlados.
OS
OLHOS DO CAVALO
Vi
uma vez um cavalo cego: a natureza errara. Era doloroso senti-lo
irrequieto, atento ao menor rumor provocado pela brisa nas ervas, com
os nervos prestes a se eriçarem num arrepio que lhe percorria o
corpo alerta. O que é que um cavalo vê a tal ponto que não ver o
seu semelhante o torna perdido como de si próprio? É que – quando
enxerga – vê fora de si o que está dentro de si. É um animal que
se expressa pela forma. Quando vê montanhas, relvas, gente, céu –
domina homens e a própria natureza.
SENSIBILIDADE
Todo cavalo é selvagem e arisco quando mãos inseguras o tocam.
ELE
E EU
Tentando
pôr em frases a minha mais oculta e sutil sensação – e
desobedecendo à minha necessidade exigente de veracidade – eu
diria: se pudesse ter escolhido queria ter nascido cavalo. Mas –
quem sabe – talvez o cavalo ele-mesmo não sinta o grande símbolo
da vida livre que nós sentimos nele. Devo então concluir que o
cavalo seria sobretudo para ser sentido por mim? O cavalo representa
a animalidade bela e solta do ser humano? O melhor do cavalo o ente
humano já tem? Então abdico de ser um cavalo e com glória passo
para a minha humanidade. O cavalo me indica o que sou.
ADOLESCÊNCIA
DA MENINA-POTRO
Já
me relacionei de modo perfeito com cavalo. Lembro-me de
mim-adolescente. De pé com a mesma altivez do cavalo e a passar a
mão pelo seu pelo lustroso. Pela sua agreste crina agressiva. Eu me
sentia como se algo meu nos visse de longe – Assim: “A Moça e o
Cavalo”.
O
ALARDE
Na
fazenda o cavalo branco – rei da natureza – lançava para o alto
da acuidade do ar o seu longo relincho de esplendor.
O
CAVALO PERIGOSO
Na
cidadezinha do interior – que se tornaria um dia uma pequena
metrópole – ainda reinavam os cavalos como proeminentes
habitantes. Sob a necessidade cada vez mais urgente de transporte,
levas de cavalos haviam invadido o lugarejo, e nas crianças ainda
selvagens nascia o secreto desejo de galopar. Um baio novo dera coice
mortal num menino que ia montá-lo. E o lugar onde a criança
audaciosa morrera era olhado pelas pessoas numa censura que na
verdade não sabiam a quem dirigir. Com as cestas de compras nos
braços, as mulheres paravam olhando. Um jornal se inteirara do caso
e leu-se com certo orgulho uma nota com o título de O Crime do
Cavalo. Era o Crime de um dos filhos da cidadezinha. O lugarejo então
já misturava a seu cheiro de estrebaria a consciência da força
contida nos cavalos.
NA
RUA SECA DE SOL
Mas
de repente – no silêncio do sol de duas horas da tarde e quase
ninguém nas ruas do subúrbio – uma parelha de cavalos desembocou
de uma esquina. Por um momento imobilizou-se de patas semierguidas.
Fulgurando nas bocas como se não estivessem amordaçadas. Ali, como
estátuas. Os poucos transeuntes que afrontavam o calor do sol
olharam, duros, separados, sem entender em palavras o que viam.
Entendiam apenas. Passado o ofuscamento da aparição – os cavalos
encurvaram o pescoço, abaixaram as patas e continuaram seu caminho.
Passara o instante de vislumbramento. Instante imobilizado como por
uma máquina fotográfica que tivesse captado alguma coisa que jamais
as palavras dirão.
NO
PÔR DO SOL
Nesse
dia, quando o sol já ia se pondo, o ouro se espalhou pelas nuvens e
pelas pedras. Os rostos dos habitantes ficaram dourados como
armaduras e assim brilhavam os cabelos desfeitos. Fábricas
empoeiradas apitavam continuamente avisando o fim do dia de trabalho,
a roda de uma carroça ganhou um nimbo dourado. Neste ouro pálido à
brisa havia uma ascensão de espada desembainhada. Porque era assim
que se erguia a estátua equestre da praça na doçura do ocaso.
NA
MADRUGADA FRIA
Podia-se
ver o morno bafo úmido – o bafo radioso e tranquilo que saía das
narinas trêmulas extremamente vivas e frementes dos cavalos e
cavalas em certas madrugadas frias.
NO
MISTÉRIO DA NOITE
Mas
à noite cavalos liberados das cargas e conduzidos à ervagem
galopavam finos e soltos no escuro. Potros, rocins, alazões, longas
éguas, cascos duros – de repente uma cabeça fria e escura de
cavalo! – os cascos batendo, focinhos espumantes erguendo-se para o
ar em ira e murmúrio. E às vezes uma longa respiração esfriava as
ervas em tremor. Então o baio se adiantava. Andava de lado, a cabeça
encurvada até o peito, cadenciado. Os outros assistiam sem olhar.
Ouvindo o rumor dos cavalos, eu adivinhava os cascos secos avançando
até estacarem no ponto mais alto da colina. E a cabeça a dominar a
cidadezinha, lançando o longo relincho. O medo me tomava nas trevas
do quarto, o terror de um rei, eu quereria responder com as gengivas
à mostra em relincho. Na inveja do desejo meu rosto adquiria a
nobreza inquieta de uma cabeça de cavalo. Cansada, jubilante,
escutando o trote sonâmbulo. Mal eu saísse do quarto minha forma
iria se avolumando e apurando, e, quando chegasse à rua, já estaria
a galopar com patas sensíveis, os cascos escorregando nos últimos
degraus da escada da casa. Da calçada deserta eu olharia: um canto e
outro. E veria as coisas como um cavalo as vê. Essa era a minha
vontade. Da casa eu procurava ao menos escutar o morro de pastagem
onde nas trevas cavalos sem nome galopavam retornados ao estado de
caça e guerra.
As
bestas não abandonavam sua vida secreta que se processa durante a
noite. E se no meio da ronda selvagem aparecia um potro branco –
era um assombro no escuro. Todos estacavam. O cavalo prodigioso
aparecia, era aparição. Mostrava-se empinado um instante.
Imóveis os animais aguardavam sem se espiar. Mas um deles batia o
casco – e a breve pancada quebrava a vigília: fustigados moviam-se
de súbito álacres, entrecruzando-se sem jamais se esbarrarem e
entre eles se perdia o cavalo branco. Até que um relincho de súbita
cólera os advertia – por um segundo atentos, logo se espalhavam de
novo em nova composição de trote, o dorso sem cavaleiros, os
pescoços abaixados até o focinho tocar no peito. Eriçadas as
crinas. Eles cadenciados, incultos.
Noite
alta – enquanto os homens dormiam – vinha encontrá-los imóveis
nas trevas. Estáveis e sem peso. Lá estavam eles invisíveis,
respirando. Aguardando com a inteligência curta. Embaixo, na
cidadezinha adormecida, um galo voava e empoleirava-se no bordo de
uma janela. As galinhas espiavam. Além da ferrovia um rato pronto a
fugir. Então o tordilho batia a pata. Não tinha boca para falar mas
dava o pequeno sinal que se manifestava de espaço a espaço na
escuridão. Eles espiavam. Aqueles animais que tinham um olho para
ver de cada lado – nada precisava ser visto de frente por eles, e
essa era a grande noite. Os flancos de uma égua percorridos por
rápida contração. Nos silêncios da noite a égua esgazeava o olho
como se estivesse rodeada pela eternidade. O potro mais inquieto
ainda erguia a crina em surdo relincho. Enfim reinava o silêncio
total. Até que a frágil luminosidade da madrugada os revelava.
Estavam separados, de pé sobre a colina. Exaustos, frescos. Tinham
passado no escuro pelo mistério da natureza dos entes.
ESTUDO
DO CAVALO DEMONÍACO
Nunca
mais repousarei porque roubei o cavalo de caçada de um Rei. Eu sou
agora pior do que eu mesma! Nunca mais repousarei: roubei o cavalo de
caçada do Rei no enfeitiçado Sabath. Se adormeço um instante, o
eco de um relincho me desperta. E é inútil tentar não ir. No
escuro da noite o resfolegar me arrepia. Finjo que durmo mas no
silêncio o ginete respira. Todos os dias será a mesma coisa: já ao
entardecer começo a ficar melancólica e pensativa. Sei que o
primeiro tambor na montanha do mal fará a noite, sei que o terceiro
já me terá envolvido na sua trovoada. E no quinto tambor já
estarei com a minha cobiça de cavalo fantasma. Até que de
madrugada, aos últimos tambores levíssimos, me encontrarei sem
saber como junto a um regato fresco, sem jamais saber o que fiz, ao
lado da enorme cansada cabeça de cavalo.
Mas
cansada de quê? Que fizemos, eu e o cavalo, nós os que trotam no
inferno da alegria de vampiro? Ele, o cavalo do Rei, me chama. Tenho
resistido em crise de suor e não vou. Da última vez em que desci de
sua sela de prata, era tão grande a minha tristeza humana por eu ter
sido o que não devia ser, que jurei que nunca mais. O trote porém
continua em mim. Converso, arrumo a casa, sorrio, mas sei que o trote
está em mim. Sinto falta dele como quem morre.
Não,
não posso deixar de ir.
E
sei que de noite, quando ele me chamar, irei. Quero que ainda uma vez
o cavalo conduza o meu pensamento. Foi com ele que aprendi. Se é
pensamento esta hora entre latidos. Começo a entristecer porque sei
com o olho – oh sem querer! não é culpa minha! – com o olho sem
querer já resplandecendo de mau regozijo – sei que irei.
Quando
de noite ele me chamar para a atração do inferno, irei. Desço como
um gato pelos telhados. Ninguém sabe, ninguém vê. Só os cães
ladram pressentindo o sobrenatural.
E
apresento-me no escuro ao cavalo que me espera, cavalo de realeza,
apresento-me muda e em fulgor. Obediente à Besta.
Correm
atrás de nós cinquenta e três flautas. À frente uma clarineta nos
alumia, a nós, os despudorados cúmplices do enigma. E nada mais me
é dado saber.
De
madrugada eu nos verei exaustos junto ao regato, sem saber que crimes
cometemos até chegar à inocente madrugada.
Na
minha boca e nas suas patas a marca do grande sangue. O que tínhamos
imolado?
De
madrugada estarei de pé ao lado do ginete agora mudo, com o resto
das flautas ainda escorrendo pelos cabelos. Os primeiros sinos de uma
igreja ao longe nos arrepiam e nos afugentam, nós desvanecemos
diante da cruz.
A
noite é a minha vida com o cavalo diabólico, eu feiticeira do
horror. A noite é minha vida, entardece, a noite pecadoramente feliz
é a vida triste que é a minha orgia – ah rouba, rouba de mim o
ginete porque de roubo em roubo até a madrugada eu já roubei para
mim e para o meu parceiro fantástico, e da madrugada já fiz um
pressentimento de terror de demoníaca alegria malsã.
Livra-me,
rouba depressa o ginete enquanto é tempo, enquanto ainda não
entardece, enquanto é dia sem trevas, se é que ainda há tempo,
pois ao roubar o ginete tive que matar o Rei, e ao assassiná-lo
roubei a morte do Rei. E a alegria orgíaca do nosso assassinato me
consome em terrível prazer. Rouba depressa o cavalo perigoso do Rei,
rouba-me antes que a noite venha e me chame.
Clarice
Lispector, in Todos os contos
Nenhum comentário:
Postar um comentário