domingo, 27 de maio de 2018

São Jorge e o Dragão

São Jorge e o Dragão (1504), de Rafael

Professor universitário, no gozo da liberdade que a aposentadoria traz, tinha agora tempo para ler os livros que não lera, fazer as viagens que não fizera, ou simplesmente tempo para vagabundear. Sobravam-lhe as razões para viver o que William Blake escrevera: “No tempo de semear, aprender; no tempo de colher, ensinar; no tempo do inverno, gozar...”. Seu inverno chegara. Era tempo de gozar. Mas não foi isso que aconteceu. Descobriu-se tomado por uma tristeza profunda, um sentimento de falta de sentido para tudo, aquilo a que se dá o nome de depressão.
Minha cabeça, ao se defrontar com um enigma, faz o que faziam os gregos: ela inventa estórias, mitos. Pois foi isso que aconteceu. Baixou-me a estória que passo a contar para explicar a incapacidade de gozar quando é tempo de gozar.
Desde muitos séculos, são Jorge fora um habitante da Lua. Romântica quando vista da Terra, a Lua era a arena de uma batalha diária entre o Santo Guerreiro e o Dragão da Maldade. Todas as manhãs, ao acordar, são Jorge sabia: havia uma missão que só ele poderia cumprir.
Era esse sentimento quase religioso de missão e de dever que dava sentido à sua vida. Bem que ele poderia ter matado o Dragão séculos antes. Mas ele sabia que, se matasse o Dragão, sua vida se transformaria num tédio sem fim: nada pra fazer, nenhuma missão a cumprir. Sua máxima espiritual era ‘Pugno, ergo sum’: luto, logo existo. São as batalhas que dão sentido à vida.
Aconteceu, entretanto, algo de que ninguém suspeitava. O Dragão era, na verdade, uma linda donzela que uma bruxa invejosa havia enfeitiçado e mandado para a Lua. Mas, como todo feitiço tem um prazo de validade, chegou também o dia em que a validade do feitiço chegou ao fim e o feitiço se desfez: o horrendo Dragão foi transformado numa linda donzela.
São Jorge, que tudo ignorava, acordou na manhã daquele dia como acordava todos os dias, determinado a cumprir o seu destino, que era dar combate ao Dragão. Com lança, armadura e espada, saiu o guerreiro no seu cavalo. Mas qual não foi o seu susto quando, em vez de um Dragão, o que o esperava era um ser que lhe era totalmente estranho: uma linda donzela.
E a donzela, com suas vestes entreabertas, o recebeu com palavras de amor e gozo: ‘Venha, Jorginho, provar do meu carinho e do mel dos meus beijos...’.
São Jorge ficou paralisado de susto e medo. Não sabia o que fazer. Essa entidade estranha não estava registrada na sua memória. Não lhe fora ensinada na escola. Fora educado a vida inteira para a batalha. Era a batalha que dava sentido à sua vida. E agora ele se defrontava com a possibilidade de simplesmente gozar sem nada fazer...
São Jorge nem desceu do seu cavalo. Voltou para onde viera, triste e deprimido, com saudades dos tempos do Dragão. O Dragão dava sentido à sua vida. O Dragão definia a sua identidade: ele era um guerreiro... Agora, perdida sua identidade de guerreiro, sua vida perdeu o sentido.
Não lhe fora ensinada na escola a arte do gozo, de não ter deveres a cumprir. Sua vida tornou-se então um grande vazio. Quanto à linda donzela, ele olhava para ela e tinha uma saudade imensa dos tempos do Dragão...”
Aposentadoria é quando o Dragão vira donzela, quando a batalha dá lugar ao gozo. Mas isso, simplesmente gozar, não nos foi ensinado. E mergulhamos então na tristeza da depressão…
Rubem Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

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