São Jorge e o Dragão (1504), de Rafael
Professor
universitário, no gozo da liberdade que a aposentadoria traz, tinha
agora tempo para ler os livros que não lera, fazer as viagens que
não fizera, ou simplesmente tempo para vagabundear. Sobravam-lhe as
razões para viver o que William Blake escrevera: “No
tempo de semear, aprender; no tempo de colher, ensinar; no tempo do
inverno, gozar...”. Seu inverno chegara. Era tempo de
gozar. Mas não foi isso que aconteceu. Descobriu-se tomado por uma
tristeza profunda, um sentimento de falta de sentido para tudo,
aquilo a que se dá o nome de depressão.
Minha
cabeça, ao se defrontar com um enigma, faz o que faziam os gregos:
ela inventa estórias, mitos. Pois foi isso que aconteceu. Baixou-me
a estória que passo a contar para explicar a incapacidade de gozar
quando é tempo de gozar.
“Desde
muitos séculos, são Jorge fora um habitante da Lua. Romântica
quando vista da Terra, a Lua era a arena de uma batalha diária entre
o Santo Guerreiro e o Dragão da Maldade. Todas as manhãs, ao
acordar, são Jorge sabia: havia uma missão que só ele poderia
cumprir.
“Era
esse sentimento quase religioso de missão e de dever que dava
sentido à sua vida. Bem que ele poderia ter matado o Dragão séculos
antes. Mas ele sabia que, se matasse o Dragão, sua vida se
transformaria num tédio sem fim: nada pra fazer, nenhuma missão a
cumprir. Sua máxima espiritual era ‘Pugno, ergo sum’: luto, logo
existo. São as batalhas que dão sentido à vida.
“Aconteceu,
entretanto, algo de que ninguém suspeitava. O Dragão era, na
verdade, uma linda donzela que uma bruxa invejosa havia enfeitiçado
e mandado para a Lua. Mas, como todo feitiço tem um prazo de
validade, chegou também o dia em que a validade do feitiço chegou
ao fim e o feitiço se desfez: o horrendo Dragão foi transformado
numa linda donzela.
“São
Jorge, que tudo ignorava, acordou na manhã daquele dia como acordava
todos os dias, determinado a cumprir o seu destino, que era dar
combate ao Dragão. Com lança, armadura e espada, saiu o guerreiro
no seu cavalo. Mas qual não foi o seu susto quando, em vez de um
Dragão, o que o esperava era um ser que lhe era totalmente estranho:
uma linda donzela.
“E
a donzela, com suas vestes entreabertas, o recebeu com palavras de
amor e gozo: ‘Venha, Jorginho, provar do meu carinho e do mel dos
meus beijos...’.
“São
Jorge ficou paralisado de susto e medo. Não sabia o que fazer. Essa
entidade estranha não estava registrada na sua memória. Não lhe
fora ensinada na escola. Fora educado a vida inteira para a batalha.
Era a batalha que dava sentido à sua vida. E agora ele se defrontava
com a possibilidade de simplesmente gozar sem nada fazer...
“São
Jorge nem desceu do seu cavalo. Voltou para onde viera, triste e
deprimido, com saudades dos tempos do Dragão. O Dragão dava sentido
à sua vida. O Dragão definia a sua identidade: ele era um
guerreiro... Agora, perdida sua identidade de guerreiro, sua vida
perdeu o sentido.
“Não
lhe fora ensinada na escola a arte do gozo, de não ter deveres a
cumprir. Sua vida tornou-se então um grande vazio. Quanto à linda
donzela, ele olhava para ela e tinha uma saudade imensa dos tempos do
Dragão...”
Aposentadoria
é quando o Dragão vira donzela, quando a batalha dá lugar ao gozo.
Mas isso, simplesmente gozar, não nos foi ensinado. E mergulhamos
então na tristeza da depressão…
Rubem
Alves,
in Pimentas: para
provocar um incêndio, não é preciso fogo
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