domingo, 27 de maio de 2018

Prólogo de Zaratustra

7.
Nesse meio-tempo caiu a noite, e a praça se ocultou na escuridão: então a gente se dispersou, pois mesmo a curiosidade e o espanto se afadigam. Mas Zaratustra ficou sentado junto ao morto, no chão, envolvido em pensamentos, e assim se esqueceu do tempo. Enfim chegou a madrugada, porém, e um vento frio deslizou pelo solitário. Então Zaratustra se levantou e disse ao seu coração:
Na verdade, uma bela pescaria teve hoje Zaratustra! Nenhum homem pescou, e sim um cadáver.
Inquietante é a existência humana, e ainda sem sentido algum: um palhaço pode lhe ser uma fatalidade.
Quero ensinar aos homens o sentido do seu ser: o qual é o super-homem, o raio vindo da negra nuvem homem.
Mas ainda me acho longe deles, e o meu sentido não fala aos seus sentidos. Ainda sou, para os homens, o ponto intermediário entre um tolo e um cadáver.
Escura é a noite, escuros são os caminhos de Zaratustra. Vem, rígido e frio companheiro! Levo-te para onde te sepultarei com minhas mãos.

8.
Após dizer isso ao seu coração, Zaratustra levou às costas o cadáver e se pôs a caminho. Ainda não havia dado cem passos quando alguém se aproximou de mansinho e lhe sussurrou algo no ouvido — e vede! era o palhaço da torre. “Vai-te embora desta cidade, ó Zaratustra”, falou ele; “muitos aqui te odeiam. Odeiam-te os bons e os justos, e te chamam de seu inimigo e desprezador; odeiam-te os crentes da verdadeira fé, e te chamam de perigo para a multidão. Tua sorte foi que riram de ti; e, na verdade, falaste à maneira de um palhaço. Tua sorte foi que te juntaste ao cachorro morto; ao te rebaixares assim, te salvaste por hoje. Mas deixa esta cidade — ou amanhã salto sobre ti, um vivo sobre um morto.” Depois de dizer isso, o homem desapareceu; mas Zaratustra continuou pelas ruas escuras.
Na porta da cidade encontrou os coveiros: eles iluminaram seu rosto com as tochas, reconheceram Zaratustra e dele zombaram muito. “Zaratustra carrega o cachorro morto; que bom que Zaratustra se tornou um coveiro! Pois nossas mãos são limpas demais para esse assado. E será que Zaratustra vai roubar o pedaço ao demônio? Então muito bem! Boa sorte e bom apetite! Se o demônio não for um ladrão melhor que Zaratustra! — ele rouba dos dois, ele come os dois!” E eles riam entre si, juntando os rostos.
Zaratustra não disse palavra, e seguiu seu caminho. Após andar por duas horas, ao longo de florestas e pântanos, tinha ouvido bastante os uivos famintos dos lobos, e ele próprio sentiu fome. Então parou junto a uma casa solitária, onde havia uma luz acesa.
A fome me assalta como um bandoleiro, disse Zaratustra. Em florestas e pântanos e no fundo da noite me assalta minha fome.
Singulares caprichos tem minha fome. Muitas vezes me vem apenas após a refeição, e hoje não veio durante o dia inteiro: onde permanecia ela?
E nisso bateu Zaratustra à porta da casa. Um homem velho apareceu; carregava a luz e perguntou: “Quem me procura, a mim e a meu sono ruim?”.
Um vivo e um morto”, disse Zaratustra. “Dai-me de comer e de beber, esqueci-me de fazê-lo durante o dia. Quem dá de comer ao faminto revigora sua própria alma: assim fala a sabedoria.”
O velho se retirou, mas logo voltou e ofereceu pão e vinho a Zaratustra. “Esta é uma má região para os que têm fome”, disse ele; “por isso moro aqui. Animais e homens vêm a mim, o eremita. Mas dize ao teu companheiro que também coma e beba, ele está mais cansado do que tu.” Zaratustra respondeu: “Está morto o meu companheiro, será difícil convencê-lo”. “Não tenho nada com isso”, disse o velho, irritado; “quem bate em minha casa tem de aceitar o que ofereço. Comei, e passai bem!” —
Em seguida, Zaratustra andou por mais duas horas, confiando no caminho e na luz das estrelas: pois ele costumava andar à noite e gostava de olhar o rosto de tudo que dorme. Mas ao alvorecer Zaratustra se achou numa densa floresta, em que não enxergava mais nenhum caminho. Então colocou o morto numa árvore oca, à altura de sua cabeça — pois queria protegê-lo dos lobos —, e deitou-se no musgo do chão. E logo adormeceu, de corpo cansado, mas de alma serena.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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