quinta-feira, 31 de maio de 2018

Prólogo de Zaratustra - 9

Longamente dormiu Zaratustra, e não apenas a aurora passou sobre o seu rosto, mas também a manhã. Enfim seus olhos se abriram: admirado, Zaratustra enxergou a floresta e o silêncio, e admirado olhou dentro de si. Então se ergueu depressa, como um navegante que subitamente vê terra, e exultou: pois viu uma nova verdade. E assim falou então ao seu coração:
Uma luz raiou para mim: de companheiros necessito, de vivos — não de mortos e cadáveres, que levo comigo para onde quero ir.
Mas de companheiros vivos necessito, que me sigam porque querem seguir a si mesmos — e para onde quero ir.
Uma luz raiou para mim: que Zaratustra não fale para o povo, mas para companheiros! Zaratustra não deve se tornar pastor e cão de um rebanho!
Para atrair muitos para fora do rebanho — vim para isso. Povo e rebanho se enfurecerão comigo: Zaratustra quer ser chamado de ladrão pelos pastores.
Pastores” digo eu, mas eles se chamam os bons e justos. “Pastores” digo eu: mas eles se chamam os crentes da verdadeira fé.
Vede os bons e justos! A quem odeiam mais? Àquele que quebra suas tábuas de valores, ao quebrador, infrator: — mas esse é o que cria.
Vede os crentes de todas as fés! A quem odeiam mais? Àquele que quebra suas tábuas de valores, ao quebrador, infrator: — mas esse é o que cria. Companheiros é o que busca o criador, não cadáveres, e tampouco rebanhos e crentes. Aqueles que criem juntamente com ele busca o criador, que escrevam novos valores em novas tábuas.
Companheiros é o que busca o criador, e aqueles que colham juntamente com ele: pois tudo nele se acha maduro para a colheita. Mas faltam-lhe as cem foices: então ele arranca as espigas e se aborrece.
Companheiros é o que busca o criador, e aqueles que saibam afiar suas foices. Destruidores serão eles chamados, e desprezadores de bem e mal. Mas são eles os que colhem e que festejam.
Aqueles que também criem busca Zaratustra, que também colham e festejem busca Zaratustra: que tem ele a fazer com rebanhos e pastores!
E tu, meu primeiro companheiro, repousa em paz! Bem te sepultei em tua árvore oca, bem te escondi dos lobos.
Mas me separo de ti, o tempo chegou. Entre duas auroras, uma nova verdade me chegou.
Não deverei ser pastor, nem coveiro. Jamais tornarei a me dirigir ao povo; pela última vez falei com um morto.
Quero juntar-me aos que criam, que colhem, que festejam: eu lhes mostrarei o arco-íris e todos os degraus até o super-homem.
Aos eremitas cantarei minha canção, e também aos eremitas a dois; e quem tiver ainda ouvidos para coisas inauditas, esse ficará de coração oprimido com a minha felicidade.
Para minha meta me ponho a caminho; saltarei sobre os hesitantes e os vagarosos. Assim, que minha marcha seja o seu declínio!
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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