quinta-feira, 31 de maio de 2018

Os mortos não se queixam mais


No começo do amanhecer, o dia vai dando voltas, com pausas; quase dá para ouvir as dobradiças da terra, que giram emboloradas; a vibração desta terra velha que derrama sua escuridão.
É verdade que a noite está cheia de pecados, Justina?
É, Susana.
De verdade?
Deve ser, Susana.
E o que você acha que a vida é, Justina, a não ser um pecado? Está ouvindo? Está ouvindo como a terra range?
Não, Susana, eu não consigo ouvir nada. Minha sorte não é tão grande como a sua.
Você iria se espantar. Eu digo que você iria se espantar se ouvisse o que eu ouço.
Justina continuou arrumando o quarto. Repassou uma vez e outra a estopa grossa sobre as tabuonas úmidas do assoalho. Limpou a água do floreiro quebrado. Recolheu as flores. Pôs os cacos de vidro no balde cheio d’água.
Quantos pássaros você matou na vida, Justina?
Muitos, Susana.
E não sentiu tristeza?
Senti, Susana.
Então, está esperando o quê para morrer?
A morte, Susana.
Se é só isso, já, já ela chega. Não se preocupe.
Susana San Juan estava erguida sobre seus travesseiros. Os olhos inquietos, olhando para todos os lados. As mãos sobre o ventre, grudadas em seu ventre como uma concha protetora. Havia ligeiros zumbidos que passavam como asas por cima da sua cabeça. E o ruído das roldanas na madeira do poço. O rumor que as pessoas fazem ao acordar.
Você acredita no inferno, Justina?
Sim, Susana. E no céu também.
Eu só acredito no inferno — ela disse. E fechou os olhos.
Quando Justina saiu do quarto, Susana San Juan estava adormecida de novo e lá fora o sol lançava chispas. Encontrou Pedro Páramo no caminho.
Como é que a senhora está?
Mal — ela respondeu agachando a cabeça.
Ela se queixa?
Não, senhor, não se queixa de nada; mas dizem que os mortos não se queixam mais. A senhora está perdida para todos.
O padre Rentería não veio vê-la?
Veio ontem, e tomou-lhe a confissão. Hoje ela deveria ter comungado, mas não deve estar nas graças, porque o padre Rentería não trouxe a comunhão para ela. Disse que ia fazer isso logo cedo, e o senhor está vendo, o sol já está aqui e ele não veio. Ela não deve estar nas graças.
Nas graças de quem?
De Deus, senhor.
Não seja boba, Justina.
Como o senhor quiser, patrão.
Pedro Páramo abriu a porta e ficou ao lado dela, deixando que um raio de luz caísse sobre Susana San Juan. Viu seus olhos apertados como quando se sente uma dor; a boca umedecida, entreaberta, e os lençóis sendo percorridos por mãos inconscientes até mostrar a nudez de seu corpo que começou a se contorcer em convulsões.
Percorreu aquele pequeno espaço que o separava da cama e cobriu o corpo nu, que continuou se debatendo como uma minhoca em espasmos cada vez mais violentos. Aproximou-se de seu ouvido e falou: “Susana!” E tornou a repetir: “Susana!”
A porta foi aberta e em silêncio entrou o padre Rentería, movendo brevemente os lábios:
Vou lhe dar a comunhão, filha minha.
Esperou que Pedro Páramo a levantasse encostando-a sobre o espaldar da cama. Susana San Juan, semiadormecida, estendeu a língua e engoliu a hóstia. Depois disse: “Tivemos um tempo muito feliz, Florencio.” E tornou a se afundar entre a sepultura de seus lençóis.
Juan Rulfo, in Pedro Páramo

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