quinta-feira, 31 de maio de 2018

O céu de um pintor

Você quer me sufocar de tanto desejo?, perguntou o pintor, sorrindo.
Pôs o celular no bolso da calça e me disse: “Era ela. Será que amanhã vai me dar o cano?”.
Donoso pegou a desempenadeira de aço e passou a massa num trecho da parede. Reclamou do tempo feio e da umidade: “Hoje não dá pra pintar. Essa massa não vai secar tão cedo…”.
Anoitecia. Mas desde o meio da tarde, quando ele começou a pintar as janelas, fazia uma pausa para dar uma olhada no celular.
Não gosto de cheiro de tinta, mas gosto de ouvir histórias.

Tinha doze anos quando vim para cá com meu tio, disse Donoso. A gente morava num quarto de uma pensão na rua Capri e eu ajudava meu tio a carregar tralhas, ele trabalhava numa transportadora. Seis anos assim, no muque, até o dia em que o dono da casa fechou a pensão e despejou todo mundo. Meu tio se esquentou e decidiu voltar para Pernambuco. Eu embirrei: quis ficar em São Paulo, não queria cuidar de bode. Saudade é coisa boa pra quem tem pai e mãe, e eu não tinha nenhum dos dois. Meu tio olhou bem nos meus olhos: “Você vai ficar aqui, Donoso? E se você se perder?”. Eu respondi: “Mais perdido do que já estou?”.
Ele me deu uns cruzeiros, pouca coisa, era um homem sovina, não abria a mão nem pra dar adeus. E foi embora. Eu penei. Morava num matagal cheio de pés de mamona, onde hoje é o shopping Eldorado. De manhã eu batia perna atrás de serviço, comia pão seco, às vezes um padeiro me dava o último salgadinho da noite. O senhor não sabe o que é a fome. Eu, modestamente, sei. Saudade mesmo eu senti do meu quarto da rua Capri, porque era duro dormir no matagal e tomar banho com água gelada no inverno. Uma tarde entrei num boteco do Butantã pra pedir um quibe, o dono me deu uma vassoura e disse: “Pode varrer tudo”. Varri tudo e ainda passei um pano no chão e lavei a louça; depois bebi muita água da torneira; bebi para matar a fome, e não a sede. O português me deu dois quibes e uns trocados. Continuei a andar por aí, procurando meu destino. Mas o destino não é o acaso? Andei até a Vila Sônia, onde vi umas casinhas em construção, quase prontas. Perguntei ao mestre de obras se ele precisava de um pintor. “Tem prática?”, ele perguntou. “Tenho sim”, menti. “Então comece a passar cal naquele muro”, disse o mestre. Passei cal no muro e ouvi do mestre: “Agora pinte as paredes daquela casa”. Disfarcei, dei uma olhada no trabalho de outro pintor e voltei para as minhas paredes. O que a gente não conhece, a gente imita. Não entendia nada de mistura de tinta, quantidade de água, acabamento, mas trabalhei com capricho, usando uma brocha de piaçaba, brocha de náilon não existia naquela época. Fui contratado, tomei gosto pela pintura, dois anos depois eu já trabalhava sozinho, tinha minha freguesia. A desgraça é que não sabia ler nem escrever, e me embaralhava com os números, não conseguia fazer orçamento. Comecei de novo: aprendi a ler, a calcular, nunca mais fui enganado… O tempo passa rápido, a gente nem percebe… Casei três vezes, tenho quatro filhos, faz tempo que estou separado. Decidi ficar quieto, sozinho, já sofri muito, não vale a pena se chatear com mulher. Mas a vida tem surpresas, e eu me apaixonei por uma moça… Já passei dos sessenta anos, ela completou trinta. A gente se encontrou num ônibus, e eu logo me encantei com a voz dela… Língua de veludo, se o senhor ouvisse. Por isso ela é telefonista, mas o salário é uma mixaria, ela ganha por mês o que eu cobro pra pintar duas janelinhas e quatro paredes. Jurou que ia me telefonar, mas jurou falso. Sumiu por dois meses. Agora me ligou para pedir desculpa. Perguntei se ela queria me sufocar de tanto desejo. Riu de mim. Disse: “Amanhã te explico o que aconteceu, amor”. Que voz! E o diabo é que ontem mesmo sonhei com ela… Você passa mais de duas horas dentro de um ônibus lotado e acaba dormindo de pé, que nem cavalo. Sonhei que subia numa escada para pintar o teto de um cinema e de repente o teto sumiu e lá no alto apareceu a minha cidade natal, pequena e pobre, do jeito que conheci quando era menino. Aí pintei de azul o céu do meu vilarejo. E nesse azul pintado por mim, surgiu o rosto da moça. Fiquei admirando a beleza dela lá nas alturas… Quando acordei, estava no Campo Limpo. Agora vou atrás do meu sonho… Gostou da pintura das janelas? Segunda-feira passo tinta nas paredes.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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