A
rua em que acontecera o pequeno acidente era um daqueles longos e
sinuosos rios de trânsito que brotam como raios do coração da
cidade, varam os bairros afastados e acabam nos subúrbios. Se o
elegante casal seguisse por ela mais um pouco, teria visto algo que
certamente lhe agradaria. Era um jardim do século XVIII, ou até
XVII, ainda parcialmente conservado; passando diante de suas grades
de ferro batido, via-se entre as árvores, sobre relvados
cuidadosamente aparados, algo que parecia um castelinho de alas
curtas, um castelinho de caça ou de amor, de tempos passados. Para
ser exato, as abóbadas de sustentação eram do século XVII, o
parque e o andar superior pareciam do século XVIII, as fachadas
tinham sido renovadas e um pouco prejudicadas no século XIX;
portanto o todo estava um tanto confuso, como em retratos
fotografados uns por cima dos outros; mas acabava-se parando ali,
infalivelmente, e dizendo: “Ah!” E quando aquela coisa alva,
graciosa e bela estava de janelas abertas, avistavam-se as paredes de
livros, nobres e silenciosas, da casa de um homem de cultura.
A
moradia e a casa pertenciam ao homem sem qualidades.
Ele
estava postado atrás de uma janela, e através do filtro
verde-pálido do ar do jardim contemplava a rua pardacenta; há dez
minutos contava com o relógio os automóveis, carruagens, bondes e
os rostos de transeuntes embaciados pela distância, que cobriam a
retina com um rápido redemoinho; avaliava as velocidades, os
ângulos, as forças vivas das massas que passavam, que atraíam o
olhar com a rapidez de um raio, prendiam-no, soltavam-no e, durante
um tempo para o qual não existe medida, forçavam a atenção a
resistir-lhes, desprender-se, saltar para o que viesse em seguida e
jogar-se atrás dele; em suma, depois de calcular mentalmente por um
momento, ele meteu o relógio no bolso, rindo, e constatou que
estivera fazendo uma tolice.
Se
se pudessem medir esses saltos da atenção, a atividade dos músculos
dos olhos, os movimentos pendulares da alma, e todos os esforços que
um ser humano precisa executar para se manter em pé na torrente de
uma rua, resultaria presumivelmente — fora isso que ele pensara,
tentando, por uma brincadeira, calcular o impossível — uma
grandeza comparada à qual a força de que Atlas necessita para
sustentar o mundo é insignificante; e poder-se-ia avaliar que
gigantesca façanha realiza hoje em dia uma pessoa que não faz coisa
alguma.
Pois
nesse momento o homem sem qualidades era uma dessas pessoas. E alguém
que faz?
“Podem-se
deduzir duas coisas”, disse ele para si mesmo.
A
atividade muscular de um cidadão que segue calmamente seu caminho um
dia inteiro é muito maior do que a de um atleta que sustenta uma vez
ao dia um peso enorme; isso foi comprovado fisiologicamente, e é
provável também que as pequenas atividades cotidianas, na sua soma
social e nessa capacidade de serem somadas, ponham muito mais energia
no mundo do que as ações heroicas; sim, o heroico parece minúsculo
como um grão de areia colocado sobre uma montanha com extraordinária
ilusão. Essa ideia lhe agradou.
Deve-se
acrescentar, porém, que ela não lhe agradava por ele amar a vida
burguesa; ao contrário, gostava apenas de contrariar suas
inclinações, que outrora tinham sido diferentes. Talvez seja
exatamente o pequeno-burguês quem prevê o começo de um heroísmo
coletivo, de formigueiro, extraordinariamente novo. Vão chamá-lo de
heroísmo racionalizado, e achar tudo muito bonito. Hoje em dia, quem
pode saber?! Mas naquele tempo havia centenas de indagações
irrespondidas desse tipo, da maior importância. Pairavam no ar,
ardiam sob os pés. O tempo corria. Pessoas que ainda não viviam
então não hão de querer acreditar, mas já então o tempo se movia
com a rapidez de um camelo de montaria; isso não é de hoje. Apenas
não se sabia para onde corria. Nem se podia distinguir direito o que
estava em cima ou embaixo, o que ia para diante ou para trás.
“A
gente pode fazer o que quiser”, disse o homem sem qualidades para
si mesmo, dando de ombros, “que isso não tem a menor importância
nesse emaranhado de forças!” Depois afastou-se, como uma pessoa
que aprendeu a renunciar, quase mesmo como um enfermo que teme
qualquer contato forte; e quando, atravessando o quarto de vestir
anexo, passou por um punching ball ali pendurado, deu-lhe um
soco rápido e forte, que não é propriamente comum em momentos de
resignação ou estados de fraqueza.
Robert
Musil, in O homem sem qualidades
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