quinta-feira, 31 de maio de 2018

Casa e moradia do homem sem qualidades

A rua em que acontecera o pequeno acidente era um daqueles longos e sinuosos rios de trânsito que brotam como raios do coração da cidade, varam os bairros afastados e acabam nos subúrbios. Se o elegante casal seguisse por ela mais um pouco, teria visto algo que certamente lhe agradaria. Era um jardim do século XVIII, ou até XVII, ainda parcialmente conservado; passando diante de suas grades de ferro batido, via-se entre as árvores, sobre relvados cuidadosamente aparados, algo que parecia um castelinho de alas curtas, um castelinho de caça ou de amor, de tempos passados. Para ser exato, as abóbadas de sustentação eram do século XVII, o parque e o andar superior pareciam do século XVIII, as fachadas tinham sido renovadas e um pouco prejudicadas no século XIX; portanto o todo estava um tanto confuso, como em retratos fotografados uns por cima dos outros; mas acabava-se parando ali, infalivelmente, e dizendo: “Ah!” E quando aquela coisa alva, graciosa e bela estava de janelas abertas, avistavam-se as paredes de livros, nobres e silenciosas, da casa de um homem de cultura.
A moradia e a casa pertenciam ao homem sem qualidades.
Ele estava postado atrás de uma janela, e através do filtro verde-pálido do ar do jardim contemplava a rua pardacenta; há dez minutos contava com o relógio os automóveis, carruagens, bondes e os rostos de transeuntes embaciados pela distância, que cobriam a retina com um rápido redemoinho; avaliava as velocidades, os ângulos, as forças vivas das massas que passavam, que atraíam o olhar com a rapidez de um raio, prendiam-no, soltavam-no e, durante um tempo para o qual não existe medida, forçavam a atenção a resistir-lhes, desprender-se, saltar para o que viesse em seguida e jogar-se atrás dele; em suma, depois de calcular mentalmente por um momento, ele meteu o relógio no bolso, rindo, e constatou que estivera fazendo uma tolice.
Se se pudessem medir esses saltos da atenção, a atividade dos músculos dos olhos, os movimentos pendulares da alma, e todos os esforços que um ser humano precisa executar para se manter em pé na torrente de uma rua, resultaria presumivelmente — fora isso que ele pensara, tentando, por uma brincadeira, calcular o impossível — uma grandeza comparada à qual a força de que Atlas necessita para sustentar o mundo é insignificante; e poder-se-ia avaliar que gigantesca façanha realiza hoje em dia uma pessoa que não faz coisa alguma.
Pois nesse momento o homem sem qualidades era uma dessas pessoas. E alguém que faz?
Podem-se deduzir duas coisas”, disse ele para si mesmo.
A atividade muscular de um cidadão que segue calmamente seu caminho um dia inteiro é muito maior do que a de um atleta que sustenta uma vez ao dia um peso enorme; isso foi comprovado fisiologicamente, e é provável também que as pequenas atividades cotidianas, na sua soma social e nessa capacidade de serem somadas, ponham muito mais energia no mundo do que as ações heroicas; sim, o heroico parece minúsculo como um grão de areia colocado sobre uma montanha com extraordinária ilusão. Essa ideia lhe agradou.
Deve-se acrescentar, porém, que ela não lhe agradava por ele amar a vida burguesa; ao contrário, gostava apenas de contrariar suas inclinações, que outrora tinham sido diferentes. Talvez seja exatamente o pequeno-burguês quem prevê o começo de um heroísmo coletivo, de formigueiro, extraordinariamente novo. Vão chamá-lo de heroísmo racionalizado, e achar tudo muito bonito. Hoje em dia, quem pode saber?! Mas naquele tempo havia centenas de indagações irrespondidas desse tipo, da maior importância. Pairavam no ar, ardiam sob os pés. O tempo corria. Pessoas que ainda não viviam então não hão de querer acreditar, mas já então o tempo se movia com a rapidez de um camelo de montaria; isso não é de hoje. Apenas não se sabia para onde corria. Nem se podia distinguir direito o que estava em cima ou embaixo, o que ia para diante ou para trás.
A gente pode fazer o que quiser”, disse o homem sem qualidades para si mesmo, dando de ombros, “que isso não tem a menor importância nesse emaranhado de forças!” Depois afastou-se, como uma pessoa que aprendeu a renunciar, quase mesmo como um enfermo que teme qualquer contato forte; e quando, atravessando o quarto de vestir anexo, passou por um punching ball ali pendurado, deu-lhe um soco rápido e forte, que não é propriamente comum em momentos de resignação ou estados de fraqueza.
Robert Musil, in O homem sem qualidades

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