terça-feira, 22 de maio de 2018

Arrepio, passagem da morte

Estudando a luz trêmula (Superstições e costumes, Ed. Antunes, Rio de Janeiro, 1958), escrevi: “Vez por outra, a chama de ouro oscilava, tremendo ao sopro de invisível vento misterioso. Vezes o morrão estalava, esturrando. A voz da narradora de encantos, Xerazade matuta, sustinha o fio da evocação, erguia a mão seca, persignando-se.
Que foi, tia Lica?
Passou uma alma!”
Em qualquer ponto do Brasil popular a chama que oscila sem vento sensível anuncia a passagem de uma alma familiar, espírito do grupo doméstico, revendo a morada terrestre. Por isso tia Lica fazia o sinal da cruz. Valia uma saudação de reconhecimento afetuoso.
O povo acredita que a Morte tenha forma e limitações somáticas. Ocupa um lugar no espaço. Deslocando-se, provoca um movimento no ar que a cerca, como a qualquer criatura humana e viva. Não faz rumor, mas não pode deixar de produzir sinais que os antigos sabiam identificar, como quem decifra uma escrita hieroglífica. O povo sabe, na visão apavorante do espectro, se a alma é boa, deixando o Paraíso em missão orientadora, ou , vinda do Inferno num “comando” satânico. E se é realmente alma do outro mundo ou visagem engendrada pelo Medo, que é um deus poderoso. Mas isso é outra estória...
Quando uma alma passa, a chama das velas ou das lâmpadas treme como se fosse tocada por uma aragem. Quando sentimos um estremecimento súbito, incontido, um inexplicável arrepiamento no dorso, leve eriçar de cabelos, uma sensação rápida de frio, o gesto instintivo de erguer os ombros, não tenha dúvida, a Morte passou por perto, roçando-nos.
Há o mesmo complexo apavorante em Portugal. Deve haver na Espanha. No sul da França, na Provence, núcleo irradiante para a Península Ibérica, perpassa o mesmo frisson quando a Morte passeia.
Mistral, em Mieio (Avignon, 1859, canto nono), escreveu: “Un frejoulun me vèn... léu ai senti la Mort qu’a passa comme un vent!”. Um tremor me vem... Senti a Morte passar como um vento...
A crendice fixa um conceito popular sobre a personalização da Morte. Não essa ou aquela figura, esqueleto com foice, nascida na Idade Média, fantasma de braços descarnados, caveira com longa roupagem branca, mas a ideia de uma conformação estável e que, mudando de lugar, determine um movimento perceptível no ambiente, impressionando o sistema nervoso dos entes humanos e de certos animais, cães, gatos, pássaros de agouro, dando à epiderme a crispação e o arrepio.
Mas, voando, enfastiada e farta, a Morte parece não procurar sua vítima.
La Mort n’en a pas faim, dizem os franceses, nesse caso.
Luís da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz

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