quinta-feira, 26 de abril de 2018

Vingança

O que a Maura fez com o Inácio — era a opinião geral — não se faz nem com um cachorro. Logo com o Inácio, flor de pessoa. A turma se solidarizou com o Inácio e, para tirá-lo da depressão, decidiu vingar-se da Maura. Objetivo: fazer com a Maura o que a Maura fizera com o Inácio. Desilusão por desilusão. Coração partido por coração partido, sem piedade.
Escalado para a função: o Boanova.
Eu?!
Você, Boanova.
O Boanova era o que se chamava, na época da máquina Remington e do Simca-Chambord, de um boa-pinta. Um pão (também se dizia). As mulheres suspiravam pelo Boanova. O Boanova usava topete fixado com Gumex e fumava cigarrilha.
Vocês estão esquecendo que eu sou maricas — protestou o Boanova.
(Na época ainda não se dizia “gay”.)
Melhor.
A conquista da Maura pelo Boanova foi arquitetada com precisão militar. O próprio Inácio — quando conseguiram resgatá-lo por instantes da fossa (na época se dizia fossa) — instruiu o Boanova, dizendo do que a Maura gostava (Chanel, beijo atrás da orelha, Gregorio Barrios) e do que ela não gostava (filme de guerra, Grapete), e colaborou num cronograma que detalhava todos os passos do namoro, desde o coxa a coxa até a mão no peito, que o Boanova ouviu com indisfarçável cara de nojo.
Importante — avisou o Inácio. — No namoro na sala. A vó dela está sempre junto.
Mas a avó dormia. Variava: às vezes levava quinze minutos para largar as agulhas de croché no colo e começar a roncar, às vezes levava mais. Mas quando começava a dormir não parava até que o namorado fosse embora. Havia tempo de sobra para desengatar o sutiã.
E começou o romance da vingança. Maura e Boanova. A turma pedia relatórios, a intervalos. Em que fase estava o namoro? O beijo atrás da orelha, estava funcionando? Já tinham chegado à mão no peito?
E aí, Boanova?
Está indo, está indo — dizia o Boanova, tragando sua cigarrilha.
Uma noite, o Boanova informou:
Está no papo.
Chegara a hora. Boanova deveria dar o fora na Maura, para ela aprender. Dizer que não a amava, que o namoro era uma farsa. Até contar que não gostava de mulher. O importante era desiludi-la. Mandá-la para a mesma fossa em que já estava o Inácio.
Estranhamente, o Boanova não mostrou muito entusiasmo com o plano. Pediu mais tempo. E aconteceu o que o leitor certamente já previa. Em vez de o Boanova dar o fora na Maura, foi a Maura que deu o fora no Boanova, fazendo com ele o que não se faz com um cachorro. E hoje o Boanova está na fossa, e não para de suspirar, pensando na Maura. Teriam que escalar outro para a vingança. Mas, depois do que aconteceu com o Boanova, ninguém se anima.
Luís Fernando Veríssimo, in Amor veríssimo

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