quinta-feira, 26 de abril de 2018

O jogo da conversa

A conversa é uma metáfora dos jogos amorosos. Há quem pense que o objetivo dos jogos amorosos é o orgasmo; pelo menos com o orgasmo os jogos amorosos chegam ao fim. Outros pensam que o fim, além do orgasmo, é a fecundação. Mas os corpos dos amantes têm outras ideias. O objetivo do jogo amoroso é estar brincando. Na conversa, o objetivo não é o final, a comunicação de uma informação, é o prazer de estar indo. A caminho dos picos há vistas fascinantes. Desejo o prazer de “estar indo”. O corpo se deleita na prática da linguagem, em si mesma. Sabedoria de Riobaldo: “O real não está na saída nem na chegada; ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.
Uma conversa é um exercício num estilo de pensamento: nunca se sabe direito o que vai aparecer... Ao final do seu prefácio, Wittgenstein diz: “Eu não gostaria que as coisas que escrevo poupassem as outras pessoas de pensar. Ao contrário, se possível, gostaria de estimulá-las a pensar pensamentos que fossem delas mesmas.”
O importante na conversa são os pensamentos que ela provoca e não as conclusões a que se chega. Uma sessão de psicanálise é conversa e não aula.
Se há uma coisa que é proibida num texto de saberes são as reticências. As reticências indicam que a caminhada não chegou ao fim. Mostram um caminho a ser seguido. São as reticências que dão vida a uma conversa: elas são a permissão e o convite para que o outro diga os seus pensamentos. Um texto de saber diz o resultado de um processo de pensamento. Uma conversa é o seu oposto. Um resultado colocaria um fim à conversa. A conversa é um movimento solto do pensamento e da fala – e, à medida que se conversa, pensamentos não pensados vão se intrometendo, mudando o curso da conversa, levando-a para um lado e para outro.
Essa “digressão” a que estou me entregando é proibida num texto de saber. Textos de saber proíbem que os autores se entreguem a confissões sobre os caminhos e descaminhos dos seus pensamentos antes de atingir o seu destino de conhecimento. O que se exige de um texto de saber é que o autor faça uma assepsia rigorosa nos seus materiais. Tudo aquilo que não diz respeito ao caminho em linha reta , que leva do problema inicial à conclusão, deve ir para a lixeira. Assim, as experiências malsucedidas, hipóteses equivocadas e erros vão para o lixo do esquecimento. É como se não tivessem acontecido.
É assim que se ensina ciência em nossas escolas. Os alunos aprendem a equação de 2o grau, mas não os caminhos e descaminhos do pensamento do matemático que a elaborou. Os professores ensinam as três leis dos movimentos dos planetas, de Kepler, mas nada falam sobre os caminhos fascinantes por onde errou o pensamento do astrônomo por dezoito anos. Pensa-se que o que importa é ensinar a conclusão verdadeira. Por que perder tempo com os equívocos? Não se percebe que, ao proceder assim, o aluno aprende o ponto de chegada sem aprender o caminho, a arte de pensar. Pensar é como escalar montanhas. Um alpinista recusaria o caminho rápido e seguro de chegar ao topo da montanha via helicóptero. O que ele deseja são os medos, os calafrios, os desafios da montanha. Assim, os alunos aprendem os resultados do pensamento e se tornam capazes de repeti-los. Tornam-se capazes de resolver exercícios. Mas não aprendem a arte de pensar. A arte de pensar se aprende seguindo-se o caminho que o pensamento realmente seguiu.
Rubem Alves, in Variações sobre o prazer

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