quarta-feira, 25 de abril de 2018

Pax Atomica

Os Estados independentes que vieram depois desses impérios tinham um nítido desinteresse por guerras. Com pouquíssimas exceções, desde 1945 eles já não invadem outros Estados para conquistá-los e anexá-los. Tais conquistas foram o feijão com arroz da história política desde tempos imemoriais. Foi assim que a maioria dos grandes impérios se estabeleceu e que a maioria dos governantes e suas populações esperavam que as coisas continuassem. Mas campanhas de conquista como as dos romanos, mongóis e otomanos não podem ocorrer em nenhum lugar do mundo. Desde 1945, nenhum país independente reconhecido pela ONU foi conquistado e varrido do mapa. Guerras internacionais limitadas ainda ocorrem de tempos em tempos, e milhões ainda morrem em guerras, mas guerras não são a norma.
Muitas pessoas acreditam que o desaparecimento de guerras internacionais é um fenômeno exclusivo das democracias ricas da Europa Ocidental. Na verdade, a paz chegou à Europa depois que prevaleceu em outras partes do mundo. Assim, as últimas guerras internacionais sérias entre países sul-americanos foram a guerra de 1941 entre o Peru e o Equador e a Guerra do Chaco (entre a Bolívia e o Paraguai), de 1932 a 1935. E antes disso não houve uma guerra séria entre países sul-americanos desde 1879-1884, com o Chile de um lado e a Bolívia e o Peru do outro.
Raramente pensamos no mundo árabe como particularmente pacífico. Mas, desde que os árabes conquistaram a independência, só uma vez um deles planejou uma invasão de outro em grande escala (a invasão iraquiana do Kuwait em 1990). Houve algumas disputas por fronteiras (por exemplo, entre a Síria e a Jordânia em 1970), muitas intervenções armadas nos assuntos do outro (por exemplo, da Síria no Líbano), uma série de guerras civis (Argélia, Iêmen, Líbia) e um sem-número de golpes e revoltas. Mas não houve nenhuma guerra internacional em grande escala entre os Estados árabes exceto a Guerra do Golfo. Mesmo se ampliarmos o escopo para incluir todo o mundo muçulmano, só encontraremos mais um exemplo, a guerra entre o Irã e o Iraque. Não houve nenhuma guerra entre a Turquia e o Irã, entre o Paquistão e o Afeganistão ou entre a Indonésia e a Malásia.
Na África, a situação é menos otimista. Mas, mesmo nesse continente, a maioria dos conflitos são guerras civis e golpes. Desde que os Estados africanos conquistaram a independência nos anos 1960 e 1970, pouquíssimos países invadiram outros na esperança de conquistá-los.
Houve períodos de calma relativa antes, como, por exemplo, na Europa entre 1871 e 1914, mas sempre terminaram mal. Mas desta vez é diferente, pois paz de verdade não é mera ausência de guerra; paz de verdade é quando uma guerra é implausível. Nunca houve paz de verdade no mundo. Entre 1871 e 1914, uma guerra europeia era uma eventualidade plausível, e a expectativa de guerra dominava o pensamento de exércitos, políticos e cidadãos comuns. Esse presságio é válido para todos os outros períodos pacíficos na história. Uma lei férrea da política internacional decretava: “Para cada dois regimes políticos próximos, há um cenário plausível que os fará entrar em guerra um contra o outro no intervalo de um ano”. Essa lei da selva esteve em vigor na Europa do fim do século XIX, na Europa medieval, na China antiga e na Grécia clássica. Se Esparta e Atenas estavam em paz em 450 a.C., havia um cenário plausível de que estariam em guerra antes de 449 a.C.
Hoje, a humanidade subverteu a lei da selva. Finalmente, há paz de verdade, e não só ausência de guerra. Para a maioria dos Estados, não há nenhum cenário plausível levando a um conflito em grande escala no intervalo de um ano. O que poderia levar a uma guerra em grande escala entre a Alemanha e a França no ano que vem? Ou entre a China e o Japão? Ou entre o Brasil e a Argentina? Alguns conflitos menores por fronteiras poderiam ocorrer, mas somente um cenário verdadeiramente apocalíptico poderia resultar em uma guerra em grande escala à moda antiga entre os países citados em 2015, com divisões armadas argentinas avançando até o Rio de Janeiro e bombardeios de saturação brasileiros pulverizando as redondezas de Buenos Aires. Guerras desse tipo talvez ainda possam eclodir no ano que vem entre vários pares de Estados, por exemplo, entre Israel e a Síria, a Etiópia e Eritreia, ou os Estados Unidos e o Irã, mas essas são apenas exceções que provam a regra.
É claro que essa situação pode mudar no futuro e, visto em retrospectiva, o mundo de hoje pode parecer incrivelmente ingênuo. Mas, de uma perspectiva histórica, nossa própria ingenuidade é fascinante. Nunca antes a paz foi tão predominante a ponto de as pessoas não conseguirem sequer imaginar a guerra.
Os estudiosos procuraram explicar esses felizes avanços em mais livros e artigos do que uma pessoa estará disposta a ler, e eles identificaram vários fatores que contribuíram para isso. Em primeiro lugar, e o mais importante, o preço da guerra aumentou drasticamente. O Prêmio Nobel da Paz definitivo deveria ter sido dado a Robert Oppenheimer e seus colegas que criaram a bomba atômica. As armas nucleares transformaram as guerras entre superpotências em suicídio coletivo e tornaram impossível procurar a dominação mundial pela força das armas.
Em segundo lugar, embora o preço da guerra tenha disparado, seus lucros diminuíram. Durante a maior parte da história, os regimes políticos puderam enriquecer por meio de pilhagens ou da anexação de territórios inimigos. A maior parte das riquezas consistia de coisas materiais, como campos, gado, escravos e ouro, de modo que era fácil roubá-la ou ocupá-la. Hoje, a riqueza consiste principalmente de capital humano e know-how organizacional. Em consequência, é difícil pilhá-la ou conquistá-la por força militar.
Considere a Califórnia. Inicialmente, sua riqueza consistia de minas de ouro, mas hoje consiste de silício e celuloide – o vale do Silício e as colinas de celuloide de Hollywood. O que aconteceria se os chineses planejassem uma invasão armada à Califórnia, enviassem 1 milhão de soldados às praias de São Francisco e atacassem o interior? Eles ganhariam pouco. Não há minas de silício no vale do Silício. A riqueza reside na mente dos engenheiros do Google e nos roteiristas, diretores e magos dos efeitos especiais de Hollywood, que estariam no primeiro avião para Bangalore ou Mumbai muito antes de os tanques chineses avançarem pela Sunset Boulevard. Não é coincidência que as poucas guerras internacionais em grande escala que ainda acontecem no mundo, como a invasão iraquiana no Kuwait, ocorrem em lugares em que a riqueza é a antiquada riqueza material. Os xeiques do Kuwait puderam fugir para o exterior, mas os campos de petróleo continuavam lá, e foram ocupados.
Enquanto a guerra se tornou menos lucrativa, a paz se tornou mais lucrativa do que nunca. Nas economias agrícolas tradicionais, o comércio em longas distâncias e o investimento internacional eram secundários. Em consequência, a paz trazia poucos lucros, a não ser os de evitar os custos de uma guerra. Se, em 1400, a Inglaterra e a França estavam em paz, os franceses não tinham de pagar impostos de guerra onerosos e sofrer invasões inglesas destrutivas, mas, fora isso, a paz não beneficiava seus bolsos. Nas economias capitalistas modernas, o comércio e os investimentos internacionais se tornaram de suma importância. A paz, portanto, traz dividendos inigualáveis. Contanto que a China e os Estados Unidos estejam em paz, os chineses podem prosperar vendendo produtos aos Estados Unidos, negociando em Wall Street e recebendo investimentos norte-americanos.
Por último, mas não menos importante, ocorreu uma mudança tectônica na política cultural global. Muitas elites na história – líderes hunos, nobres vikings e sacerdotes astecas, por exemplo – viam a guerra como algo positivo. Outras a viam como nociva, mas inevitável, sendo melhor, portanto, usá-la em vantagem própria. Quanto à nossa, é a primeira vez na história em que o mundo é dominado por uma elite que ama a paz – políticos, empresários, intelectuais e artistas que genuinamente veem a guerra como maléfica e evitável. (Houve pacifistas no passado, como os primeiros cristãos, mas, nas raras ocasiões em que conquistaram poder, eles tenderam a esquecer a ideia de “oferecer a outra face”.)
Há um ciclo de retroalimentação positivo entre todos esses quatro fatores. A ameaça de um holocausto nuclear promove o pacifismo; quando o pacifismo se espalha, a guerra recua e o comércio floresce; e o comércio aumenta os lucros da paz e os custos da guerra. Com o tempo, esse ciclo cria mais um obstáculo à guerra, que pode acabar se mostrando o mais importante de todos. A rede cada vez mais rígida de conexões internacionais corrói a independência da maioria dos países, diminuindo a chance de que um deles possa, sozinho, começar uma guerra. A maioria dos países já não se envolve em guerras de grande escala pela simples razão de que já não são independentes. Embora os cidadãos em Israel, na Itália, no México ou na Tailândia possam alimentar ilusões de independência, o fato é que seus governos não podem conduzir políticas econômicas ou externas independentes, e certamente são incapazes de iniciar e conduzir uma guerra em grande escala por conta própria. Conforme explicado no capítulo 11, estamos testemunhando a formação de um império global. Como os impérios anteriores, este também impõe a paz no interior de suas fronteiras. E, considerando que suas fronteiras abrangem o mundo inteiro, o Império Mundial, com efeito, impõe a paz mundial. Então, a era moderna é uma era obtusa de carnificina, guerra e opressão, tipificada pelas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, pela nuvem de fumaça nuclear sobre Hiroshima e pelas manias sangrentas de Hitler e de Stalin? Ou é uma era de paz, simbolizada pelas trincheiras nunca cavadas na América do Sul, as nuvens de cogumelo que nunca apareceram sobre Moscou e Nova York e as visões serenas de Mahatma Gandhi e Martin Luther King?
A resposta é uma questão de tempo. É curioso perceber com que frequência nossa visão do passado é distorcida pelos acontecimentos dos últimos anos. Se este capítulo tivesse sido escrito em 1945 ou 1962, provavelmente teria sido muito mais melancólico. Como foi escrito em nossos dias, adota uma abordagem relativamente alegre da história moderna.
Para satisfazer otimistas e pessimistas, podemos concluir dizendo que estamos no limiar do céu e do inferno, movendo-nos nervosamente dos portões de um para a antessala do outro. A história ainda não se decidiu sobre nosso destino, e uma série de coincidências ainda pode nos colocar em uma ou outra direção.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

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