quarta-feira, 4 de abril de 2018

O argumento do plano divino

O próximo passo neste processo nos leva ao argumento do plano divino. Todos conhecem o argumento do plano divino: tudo no mundo é feito para que consigamos viver nele, e, se o mundo fosse mesmo que só um pouquinho diferente, não conseguiríamos habitá-lo. Esse é o argumento do plano divino. Às vezes ele toma uma forma bastante curiosa; por exemplo, argumenta-se que as lebres têm cauda branca para serem alvo fácil dos caçadores. Não sei o que as lebres achariam dessa aplicação. Trata-se de um argumento realmente fácil de parodiar. Todos os senhores conhecem a observação de Voltaire de que o nariz obviamente foi desenhado de modo que pudesse segurar os óculos. Esse tipo de paródia revelou-se nem de perto estar tão distante da verdade quanto podia parecer no século XVIII, porque desde a época de Darwin compreendemos de um modo muito melhor por que as criaturas vivas se adaptam a seu ambiente. Não que o ambiente seja feito para se adequar a elas, mas elas é que se modificam para adequar-se a ele, e essa é a base da adaptação. Não existe evidência de plano divino em relação a isso.
Quando se examina esse argumento do plano divino, parece surpreendente que as pessoas possam acreditar que este mundo, com todas as coisas que ele contém, com todos os seus defeitos, deve ser o melhor que a onipotência e a onisciência conseguiram produzir em milhões de anos. Eu realmente não consigo acreditar nisso. Os senhores acham que, se tivessem a onipotência e a onisciência e milhões de anos para aperfeiçoar seu mundo, não seriam capazes de produzir nada melhor do que a Ku-Klux-Klan ou os fascistas? Ademais, quando se aceitam as leis comuns da ciência, é necessário supor que a vida humana e a vida em geral neste planeta morrerão a seu tempo: trata-se de um estágio de decadência do sistema solar; em um certo estágio dessa decadência, obtêm-se o tipo de condições de temperatura, e assim por diante, que são adequadas ao protoplasma, sendo que existe vida, durante um curto espaço de tempo, na vida de todo o sistema solar. Vê-se na lua o tipo de coisa que é a tendência da Terra – transformar-se em algo morto, frio e sem vida.
Disseram-me que esse tipo de visão é deprimente, e as pessoas às vezes afirmam que, se acreditassem nisso, não seriam capazes de continuar vivendo. Não acreditem nisso; não passa de disparate. Ninguém realmente se preocupa com o que irá acontecer daqui a milhões de anos. Mesmo que achem que se preocupam muito com isso, na verdade só estão se enganando. A preocupação delas diz respeito a algo muito mais mundano, ou pode tratar-se meramente de má digestão; mas ninguém de fato fica seriamente infeliz por pensar que algo de ruim vai acontecer com este mundo daqui a milhões de anos. Assim, apesar de obviamente ser uma visão fúnebre supor que a vida morrerá – pelo menos suponho que possamos fazer essa afirmação, apesar de às vezes eu achar que isso é quase um consolo, quando vejo as coisas que as pessoas fazem com a própria vida –, isso não é tão terrível a ponto de transformar a vida em um tormento. Essa questão simplesmente faz com que se volte a atenção para outras coisas.
Bertrand Russell, in Por que não sou cristão

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