Fotograma do filme A festa de Babette
Os
textos sagrados dizem que, quando Deus voltar à terra do seu exílio,
a sua presença será servida como um banquete: todos reunidos à
volta de uma mesa, comendo, bebendo, conversando, rindo... Deus se dá
como comida. Tal como aconteceu no filme A
festa de Babette.
Babette, a feiticeira, com a sua culinária, transformou uma aldeia
de pessoas amargas em crianças! O comer é um ritual mágico.
Comer
é o impulso mais primitivo do corpo. O nenezinho tudo ignora: para
ele, o mundo se reduz a um único objeto mágico, o seio da sua mãe.
Nasce daí a primeira filosofia, resumo de todas as outras: o mundo é
para ser comido. Disse alguém que a nossa infelicidade se deve ao
fato de que não podemos comer tudo o que vemos. Sabem disso os
poetas. Os poetas são seres vorazes. Escrevem com intenções
culinárias. Querem transformar o mundo inteiro, os seus fragmentos
mais insignificantes, em comida. Quem sabe numa simples azeitona...
Poemas são para serem comidos. “Sou
onívoro de sentimentos, de seres, de livros, de acontecimentos e
lutas”,
dizia Neruda... “Comeria
toda a terra. Beberia todo o mar...” “Persigo algumas palavras...
Agarro-as no voo... e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparando-me
diante do prato, sinto-as cristalinas, ... vegetais, oleosas, como
frutas, como azeitonas... E então as revolvo, agito-as, bebo-as,
sugo-as...”
A
memória mais forte que tenho do cozinhar é a de um pai preparando
um peixe para o forno. Ele ficava transfigurado. Acho que teria se
realizado mais como cozinheiro. Quando via o prazer no rosto dos
convidados, era como se estivessem devorando ele mesmo, o cozinheiro,
antropofagicamente. Todo cozinheiro quer sentir-se devorado. Toda
comida é antropofagia, toda comida é sacramento.
Fico
a me perguntar: quais foram as razões que fizeram com que a
culinária nunca tenha sido elevada à dignidade acadêmica de
“arte”, como a música e a pintura? Talvez porque o prazer da
comida seja tão intenso que não deixa espaço para as funções
contemplativas e intelectuais, ligadas às outras artes.
Rubem Alves,
in Pimentas:
para provocar um incêndio, não é preciso fogo
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