sábado, 21 de abril de 2018

Cozinhar

Fotograma do filme A festa de Babette

Os textos sagrados dizem que, quando Deus voltar à terra do seu exílio, a sua presença será servida como um banquete: todos reunidos à volta de uma mesa, comendo, bebendo, conversando, rindo... Deus se dá como comida. Tal como aconteceu no filme A festa de Babette. Babette, a feiticeira, com a sua culinária, transformou uma aldeia de pessoas amargas em crianças! O comer é um ritual mágico.
Comer é o impulso mais primitivo do corpo. O nenezinho tudo ignora: para ele, o mundo se reduz a um único objeto mágico, o seio da sua mãe. Nasce daí a primeira filosofia, resumo de todas as outras: o mundo é para ser comido. Disse alguém que a nossa infelicidade se deve ao fato de que não podemos comer tudo o que vemos. Sabem disso os poetas. Os poetas são seres vorazes. Escrevem com intenções culinárias. Querem transformar o mundo inteiro, os seus fragmentos mais insignificantes, em comida. Quem sabe numa simples azeitona... Poemas são para serem comidos. “Sou onívoro de sentimentos, de seres, de livros, de acontecimentos e lutas”, dizia Neruda... “Comeria toda a terra. Beberia todo o mar...” “Persigo algumas palavras... Agarro-as no voo... e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparando-me diante do prato, sinto-as cristalinas, ... vegetais, oleosas, como frutas, como azeitonas... E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as...”
A memória mais forte que tenho do cozinhar é a de um pai preparando um peixe para o forno. Ele ficava transfigurado. Acho que teria se realizado mais como cozinheiro. Quando via o prazer no rosto dos convidados, era como se estivessem devorando ele mesmo, o cozinheiro, antropofagicamente. Todo cozinheiro quer sentir-se devorado. Toda comida é antropofagia, toda comida é sacramento.
Fico a me perguntar: quais foram as razões que fizeram com que a culinária nunca tenha sido elevada à dignidade acadêmica de “arte”, como a música e a pintura? Talvez porque o prazer da comida seja tão intenso que não deixa espaço para as funções contemplativas e intelectuais, ligadas às outras artes.
Rubem Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

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