Poucos
meses antes de sua morte, fiz uma última visita a Hilda Hilst,
reclusa em sua Casa do Sol. Foi uma mulher linda, o tempo a devastou.
A gordura mórbida balançava sob a bata imensa. O semblante,
encrespado pela decepção, tremia. Apoiava-se em uma bengala tosca,
amaldiçoava seus amados cachorros e trazia os cabelos em tempestade.
Na
mesa da cozinha, encarando-me, Hilda desabafou: “Tornei-me uma
bruxa”. Falava da cisão cruel, grande fosso, que separa a
existência das palavras. Resumiu assim: “Enquanto minha literatura
vai para um lado, meu corpo inteiro se move para o outro”.
A
frase assustadora de Hilda me volta enquanto leio A minha alma é
irmã de Deus (Record), romance de Raimundo Carrero, livro com
que ele encerra seu “Quarteto áspero”. Na protagonista, Camila,
encontro a mesma desordem que atordoou Hilda em seus últimos dias.
Nos
dias ásperos de hoje, muitos se apegam ao enigma da alma. Outros
creem que o verdadeiro enigma está no corpo. Com as ideias, nos
consolamos; o corpo despreza as abstrações. Lembro aqui de uma
frase que, perplexa, minha velha mãe pronunciou, outro dia, diante
do espelho: “Estou muito diferente de mim”.
Não
é só um efeito da velhice. Em seu romance, Carrero trabalha com uma
ideia estupenda de Samuel Beckett, que localiza melhor essa
devastação. “O que chamam de amor é o exílio”, diz Beckett. O
corpo não acompanha o sopro do humano – esteja ele nos
sentimentos, nas paixões ou nas palavras. Lembro outra vez de Hilda,
que, sem pudor, me disse: “Meu corpo anda cansado de mim”.
O
deslocamento entre a matéria e o espírito (seja ele o que for) se
expressa, com força, em um personagem secundário de Carrero: o
camelô Alvarenga. Obeso e com cara de anão, ele não tira um velho
gorro de Papai Noel, “embora deteste ser chamado de Papai Noel”.
Um perplexo Carrero nos defronta: “Como é que uma pessoa não quer
uma coisa e faz? Vá entender, vá”.
O
pedido de Alvarenga – “Não me chamem de Papai Noel” – não
combina com o gorro vermelho que leva na cabeça. Alvarenga quer o
que não quer. Pensa uma coisa, mas o corpo lhe diz outra. Por que
palavras (os nomes) e corpos não sincronizam? Porque palavras – e
nomes – são o destino. Escreve Carrero a respeito de sua delicada
protagonista, Camila: “Só lhe restava cumprir o nome. É assim,
sempre: um nome é um destino. E não se discute mais”.
Entre
as palavras (a alma) e o corpo, contudo, algo se interpõe: o
incêndio do amor. Algo sopra não deles, mas entre eles. Camila é
“sequestrada” por Leonardo, o pastor da seita Os Soldados da
Pátria por Cristo. O pastor não abandona seu saxofone: acredita
mais na música que nas palavras. Como o flautista de Hamelin, dos
irmãos Grimm, que arrasta com suas melodias os ratos para afogá-los
no rio Weser, também Leonardo usa a música para capturar (para
sequestrar) almas.
O
amor não é só um exílio, ele é também um sequestro, em que algo
nos afasta de nós mesmos. Camila sabe que o corpo é puxado por
coisas que não controlamos, e por isso sonha em se tornar santa –
isto é, ser apenas alma, e não mais corpo. Sonho falhado, porque a
alma também aprisiona.
Muito
além da biologia, o que se passa no corpo vem de fora. E nele se
fixa, como um selo – o registro de um destino. Certo dia, Camila vê
sua sombra refletiva no chão. “É por causa da sombra que eu sou
Camila.” Mais que o corpo com vísceras e glândulas, mais que as
palavras com seus sentidos e abstrações, há uma sombra que –
empurrada para um vão, como a Senhora D., de Hilda Hilst, espremida
no vão de uma escada – determina o destino pessoal. Sombra que
marca as palavras com seus lapsos e gaguejos; e que fere o corpo com
seus tremores, arrepios e paixões. É na sombra que quase tudo está.
Ocorre-me,
aqui, outro romance de Carrero, Sombra severa, como
instrumento para ler o próprio Carrero. Carrero contra Carrero. Em
dado momento, um aflito Judas faz uma reflexão que me ajuda: “As
ações não nasciam de sua alma atormentada, mas das emboscadas que
o segredo sabe preparar”. A existência não está no corpo, muito
menos na alma; está entre eles. Pode manifestar-se em um suspiro, em
uma visão súbita, em quase nada.
Nem
na alma nem no corpo: entre os dois. Na sombra. Hilda gostava de
passar as tardes sob uma imensa figueira. Acreditava que era mágica.
À sombra da árvore, ela se interrogava a respeito do existir.
Poderia repetir a frase de Camila: “Não desejo saber o que estou
fazendo no mundo. Quero saber por que tenho um corpo”. Quer saber
mais: o que se faz com ele.
Um
dia, o pastor Leonardo desaparece. Leva consigo a alma de Camila.
Resta-lhe o corpo que, como um dejeto, ela arrasta pelas ruas. Seu
corpo já não lhe pertence. Desiste de pensar nele (o que só a leva
ao desamparo). Prefere arrastar-se, como um réptil que serpenteia
sem saber que existe.
Não
é nem no corpo nem na alma que existimos, mas entre eles. No choque
(do atrito) entre os dois. Camila deseja tornar-se santa porque “ter
um corpo é tão limitador”. Não percebe que a ideia da alma
também a diminui. A adesão ao pastor é, ela também, um rapto.
Mas, então, onde está Camila?
Está
no lixo, passa a levar uma vida de catadora, entre os ratos – como
Hamelin. Só que, ao contrário do flautista dos Grimm, são os ratos
que a arrastam. Não com a música, mas com seu silêncio. Silêncio
que rói pelas beiradas os limites do mundo. Que transforma a
existência em uma espécie de vazamento. Em um choro.
Os
personagens de Carrero vivem entre ruínas – e aqui penso em outro
romance do escritor, As sombrias ruínas da alma. Sempre a
cegueira, sempre a sombra. Como se Carrero, para escrever, precisasse
usar óculos escuros que o separassem do mundo (do corpo), mas que
também lhe borrassem a visão (a alma). Só nesse vão – agachado
sob a escada da existência – se escreve.
Volto
a pensar em Hilda. Penso em Carrero. São escritores do deserto –
que tateiam, cambaleiam, mas avançam. Não sei se chegaram a se
conhecer. Talvez viessem a se odiar. Esse ódio (faísca) seria só
um relâmpago. O leve roçar entre corpo e espírito, ali onde a
escrita (como um tapete muito antigo) se desenrola.
José
Castello, in Sábados inquietos
Nenhum comentário:
Postar um comentário