sábado, 21 de abril de 2018

Amanhecer

Grande era a intimidade de Martiniano com as horas derradeiras da noite. Sabia esperar o dia com um ajuste perfeito entre sua alma e o tempo liso da espera. Nesse ajuste se somavam ou colaboravam o fogo, o mate, o fumo, o bem-estar do corpo descansado e são que dormira com a mulher, o sereno encantamento de estar só e sentir-se acompanhado. Naquela madrugada, contudo, uma impaciência nova substituía-se ao gozo antigo e manso do amanhecer, e a aurora parecia retardar-se além da conta. Quando, finalmente, ela chegou, quando Martiniano soube – por cem signos, sem necessidade de olhar – que já clareara o bastante, levantou-se, apagou o candeeiro e saiu do rancho. Deixou trancado o cachorro, em cuja discrição não podia confiar.
Vastas luzes já se adonavam do céu, mas ainda remanesciam massas de névoa noturna, como querendo resistir ao rés do chão. O rancho ficava ao pé de uma coxilha alta, quase na base da encosta que ascendia suave e longamente. Martiniano, com passos receosos, detendo-se repetidas vezes para observar as cercanias, deu uma volta completa ao redor dele. Nada viu que justificasse a inquietação de Correntino e seguiu caminhando até o forno de pão. O vento da noite morria pouco a pouco, em sopros cansados. No lombo da coxilha, fragmentos de névoas se afastavam uns dos outros, como a debandar sem pressa. Estava nascendo o dia no céu, estava subindo a estrela d’alva como um olho de cavalo assassinado, e as estrelas em pânico fugiam ou naufragavam. E estava nascendo o dia também na terra, em torno de Martiniano, com a algazarra dos passarinhos nas árvores, os mugidos da vaca leiteira, as galinhas saltando dos galhos baixos do umbu e dos beirais do galpãozinho. Martiniano esperava, sem saber o que esperava, e foi então que ouviu o coro dos quero-queros.
Um bando de quero-queros escandalizando o amanhecer não era coisa que pudesse chamar a atenção de um gaúcho. Mas os sempiternos gritões tinham vários estilos de gritar, e aquele bando invisível o fazia de maneira excessivamente desaforada e unânime. Por certo era um bando numeroso e os gritos vinham de cima da coxilha. Nessa direção pôs a caminhar Martiniano e em seguida parou, vacilante, à escuta, a meio caminho entre o palanque e o galpãozinho. Os quero-queros gritavam com fúria, decerto voando baixo, na altura da cabeça de um homem a cavalo. Martiniano retrocedeu sem dar-se conta e foi postar-se junto ao bocal do poço, numa atitude coruja vigilante.
Mario Arregui, in Cavalos do amanhecer

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