Antônio
pensava que tinha palavra que servia pra usar no dia a dia e tinha
palavra que só servia pra fazer ditado. Sempre ficou intrigado: “Que
ideia de jerico se inventar um negócio que só dá trabalho de
aprender pra nunca ter o prazer de fazer uso.” Ainda mais palavra
difícil de escrever como extravagância, se qualquer extravagância
que se fizesse em Nordestina era tida por leseira mesmo.
E
haja a procurar palavra importante pra explicar que sua leseira, ou
sua extravagância, com acento circunflexo, era querer Karina até
onde se pode querer alguém neste mundo de meu Deus, com letra
maiúscula, pois, além de nome próprio, Deus é como atende nosso
pai e criador.
Com
tanta palavra que existia e não havia uma que servisse pra dizer o
que Antônio sentia por Karina exatamente. Até que ele tentou
inventar algumas, mas não havia som nem letra escrita que dissesse
nada parecido.
Assim,
sem ter como fazer com que ela soubesse o que ele sentia, o tempo de
Antônio ia passando pelos dias de Karina. Dia de segunda tinha filme
americano, dia de terça tinha cheiro de feira, dia de quarta tinha o
programa que ela mais gostava, depois da novela, e naquela quarta ia
passar o último clip
dos Condenados.
Os
Condenados eram quatro rapazes que cantavam e faziam muito sucesso
naquele mês de setembro.
Clip
era um filmezinho que você via mas não precisava entender.
O
clip
dos Condenados devia ser muito bom ou do contrário a plateia não ia
gritar tanto. O pedaço em que aparecia uma vaca pastando era da
maior importância pra não compreensão daquela aparição, e a
freira que voava com uma touca de natação amarela na cabeça também
merecia ser observada detalhadamente, uma vez que não servia pra
nada a não ser pra isso.
No
que findou o clip,
Antônio levantou-se da cadeira, disse até amanhã e Karina
respondeu, até depois de amanhã que amanhã é quinta. Dia de
quinta era dia de Karina visitar a avó e Antônio aproveitava pra
botar em dia a palavra saudade.
Em
compensação, dia de sexta tinha dança no clube. Houve um tempo em
que o salão ficava lotado. No tempo de Antônio, não. Como a cada
semana ia-se embora um, os pares foram se desfazendo, deixando cada
vez mais ímpares desemparelhados. Depois foi a vez dos ímpares irem
ficando também cada vez menos, coitados desses, é impressionante
como os números ímpares são muito mais tristes do que os pares.
Numa sexta o conjunto ficou sem violeiro, na outra sem sanfoneiro, na
outra sem cantor, e, naquela sexta, Antônio teve que se virar em
vários pra tocar, cantar e dançar com Karina ao mesmo tempo, ou ia
bem deixá-la lá, sentada?
Dia
de sábado era quando a luz do sol que entrava pela janela do quarto,
refletida no chão, acordava mais perto da porta. Ele achava bonito
pensar que o sol tinha nascido depois, porque era sábado, e foi pena
que naquele dia ficou provado o contrário.
No
que deu seis horas da manhã, e a luz lá, onde ficava de segunda a
sexta, Antônio pulou da cama com um pressentimento. Era como se
estivesse por nascer uma maneira de convencer Karina daquilo que não
tinha nome, não tinha forma, não tinha jeito, não tinha espaço.
Acordado
Antônio ficou, “O que é que tu tanto pensa, menino?”,
“Besteira, mãe”, até o dia seguinte, que, por ser domingo, era
dia de dar volta na praça.
E
foi mesmo na frente da igreja que a vida de Antônio deu uma volta
medonha, pois, no que viu Karina, seu coração disse pra sua cabeça,
vá, e sua cabeça disse pra sua coragem, vou, e sua coragem
respondeu, vou nada, mas sua boca não ouviu e beijou Karina bem ali,
no meio da praça, e a boca de Karina não disse não, e nem poderia,
pois estava por demais ocupada.
Daí
pra frente se sucederam muitas noites de festa e muitas outras de
desgraça, tanto no coração dele como no dela, e a graça do amor
não é justamente esse emperrado? Quer, não quer, pode, não pode,
quer mas não pode, pode mas não quer, um passa a querer no que o
outro desquer e esse só vai querer novamente com a desquerência do
outro.
O
fato é que, foi, não foi, Karina e Antônio foram destrocando juras
pra lá e pra cá, cada vez mais muitas, e Nordestina acabou se
acostumando com aquelas palavras de amor passeando pelas ruas até
não sei que horas da madrugada.
Adriana
Falcão,
in A
máquina
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