Se
Jesuzinho era sombra, a esposa Vitória era crepúsculo dessa sombra.
No terceiro aniversário da Independência, no preciso momento em que
clamavam os jargões revolucionários, Vitória ficou certa para
sempre. A goesa fechou nos olhos o olhar. Sob a parede do crucifixo,
o funcionário a cobriu de lençol e rezas. Findava ali a única
família, o único mundo de Jesuzinho da Graça.
Nos
seguintes meses, o viúvo manteve o comportamento. Jesuzinho era como
a formiga que nunca descarreira? _única diferença: agora se
demorava entre o ali e o acolá. E com o demorar da solidão ele foi
entrando na bebida. O jovem empregado doméstico lhe perguntava a
medo:
— O
senhor não tem parenteamento com ninguém?”
Jesuzinho
apontava a garrafa de aguardente. Aquele era o seu parente por via do
pai. Depois, se lembrava e apontava o crucifixo na parede.
—
Essoutro, ali na parede, é via da mãe.
De
improvável a vida é uma goteira pingando ao avesso. Aos poucos, o
goês deu sinais de maior desarranjo: as horas se perdiam dele.
Funcionário do zelo, eterno cumpridor de regulamento, deixou de
espremer o mata-borrão sobre os escritos de sua lavra. Saudades de
um tempo em que o mundo era dócil, autenticável em 25 linhas?
Mas
mesmo em suas inatitudes ele mantinha aprumo. Terças— feiras era
dia de bebedeira, sua única combinação com o tempo. Ia para o bar,
transitava lentamente para dentro do copo, espumava as agonias.
Chegava tarde a casa, desalinhado mas sempre cuidando do fato branco.
Se postava no canapé, acendia o cigarro que diria a falecida? e
puxava o cinzeiro de pé alto, passando as mãos pelo ébano
torneado. Trançava ainda o cabelo de Vitória? Depois, fazia estalar
a unha nas unhas e chamava:
—
Piquinino: ande dissepertar gravata.
O
empregado acorria a lhe aliviar a garganta. Lhe despescoçava a
camisa e entornava uns pós-de-talco sobre a camisola interior.
Desfeito o nó e já ele estava disposto ao sono. Serviço do moço
era ficar vigiando o descanso do patrão.
Aqueles
sonos eram sobressalteados. Passava uma frestinha de tempo e o caneco
gritava pela falecida. Sua mão trémula apanhava o telefone, ligava
para os céus. Era então que estreava a mais nobre função de
Piquinino: fingir-se dela, imitar voz e suspiros da extinta.
— Vucê
qui está pagar chamada, Vitorinha. Aí, no céu, tudo sai mais
barato.
O
empregadito se esforçava em aflautinar a voz, copiando os esganiços
de Vitorinha. Acabadas as conversas, o empregado copiava os modos da
antiga senhora e brilhantinava os cabelos do patrão, acertando a
risca em diagonal no cabelo.
Todavia
e à medida do tempo, o moço se foi tomando de terrores. Ele se
interrogava: imitar mortos? Brincar assim com espíritos só podia
trazer castigo. Foi consultar o pai, pedir vantagem de um conselho. O
velhote concordou: deixe o homem, fuja disso. E foi desenrolando
sabedorias: quantos lados tem a terra para o camaleão? Os mortos
sabe-se lá para quem estão olhando? O outro mundo é muitíssimo
infinito: não há falecido que não seja da nossa família.
E
o miúdo regressou decidido a nunca mais se prestar a aparições.
Terça-feira chegou e o patrão, nessa noite, não saiu a rondar os
bares. Parecia abatido, doente. Ficou deitado no sofá da sala,
olhando para muito nada. Chamou o empregadito e lhe pediu que se
transvestisse de Vitória. O miúdo nem respondeu. Surpreso,
Jesuzinho ficou a papagaiar baixinho. E se passaram momentos. Até
que o jovem serviçal percebeu que o patrão chorava. Se debruçou
sobre ele e viu que ladainhava o mesmo de sempre:
—
Vitorinha!”
O
empregado ficou estático. O patrão que implorasse que ele não
avançaria um pé. O caneco, afinal, estava bêbado. O hálito não
deixava dúvidas. Mas como, se não lhe vira a beber? Tivesse ou não
emborcado, o certo é que ele transbordava babas e suspiros. Estava
nesse devaneio quando murmurou as mais estranhas palavras: queria
encontrar a esposa já devidamente desunhado. Entregando o braço no
colo do empregado, implorou:
— Me
corte a unha, Piquinino!”
No
dia seguinte, encontraram o empregado, imóvel junto à poltrona do
patrão. O que o moço falou foi para ninguém deitar crédito. O
seguinte: mal começou a cortar o rente da unha, o patrão se
desvaneceu, como fumo de incenso. E a unha está onde, pá? O miúdo
debruçou-se sobre o soalho e levantou o que, por instante, pareceu
ser uma desflorida pétala. Sorriu, lembrando o patrão. E exibiu a
derradeira extremidade da sua humanidade.
Mia
Couto, in Contos do nascer da Terra
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