sexta-feira, 30 de março de 2018

O viúvo

Se Jesuzinho era sombra, a esposa Vitória era crepúsculo dessa sombra. No terceiro aniversário da Independência, no preciso momento em que clamavam os jargões revolucionários, Vitória ficou certa para sempre. A goesa fechou nos olhos o olhar. Sob a parede do crucifixo, o funcionário a cobriu de lençol e rezas. Findava ali a única família, o único mundo de Jesuzinho da Graça.
Nos seguintes meses, o viúvo manteve o comportamento. Jesuzinho era como a formiga que nunca descarreira? _única diferença: agora se demorava entre o ali e o acolá. E com o demorar da solidão ele foi entrando na bebida. O jovem empregado doméstico lhe perguntava a medo:
O senhor não tem parenteamento com ninguém?”
Jesuzinho apontava a garrafa de aguardente. Aquele era o seu parente por via do pai. Depois, se lembrava e apontava o crucifixo na parede.
Essoutro, ali na parede, é via da mãe.
De improvável a vida é uma goteira pingando ao avesso. Aos poucos, o goês deu sinais de maior desarranjo: as horas se perdiam dele. Funcionário do zelo, eterno cumpridor de regulamento, deixou de espremer o mata-borrão sobre os escritos de sua lavra. Saudades de um tempo em que o mundo era dócil, autenticável em 25 linhas?
Mas mesmo em suas inatitudes ele mantinha aprumo. Terças— feiras era dia de bebedeira, sua única combinação com o tempo. Ia para o bar, transitava lentamente para dentro do copo, espumava as agonias. Chegava tarde a casa, desalinhado mas sempre cuidando do fato branco. Se postava no canapé, acendia o cigarro que diria a falecida? e puxava o cinzeiro de pé alto, passando as mãos pelo ébano torneado. Trançava ainda o cabelo de Vitória? Depois, fazia estalar a unha nas unhas e chamava:
Piquinino: ande dissepertar gravata.
O empregado acorria a lhe aliviar a garganta. Lhe despescoçava a camisa e entornava uns pós-de-talco sobre a camisola interior. Desfeito o nó e já ele estava disposto ao sono. Serviço do moço era ficar vigiando o descanso do patrão.
Aqueles sonos eram sobressalteados. Passava uma frestinha de tempo e o caneco gritava pela falecida. Sua mão trémula apanhava o telefone, ligava para os céus. Era então que estreava a mais nobre função de Piquinino: fingir-se dela, imitar voz e suspiros da extinta.
Vucê qui está pagar chamada, Vitorinha. Aí, no céu, tudo sai mais barato.
O empregadito se esforçava em aflautinar a voz, copiando os esganiços de Vitorinha. Acabadas as conversas, o empregado copiava os modos da antiga senhora e brilhantinava os cabelos do patrão, acertando a risca em diagonal no cabelo.
Todavia e à medida do tempo, o moço se foi tomando de terrores. Ele se interrogava: imitar mortos? Brincar assim com espíritos só podia trazer castigo. Foi consultar o pai, pedir vantagem de um conselho. O velhote concordou: deixe o homem, fuja disso. E foi desenrolando sabedorias: quantos lados tem a terra para o camaleão? Os mortos sabe-se lá para quem estão olhando? O outro mundo é muitíssimo infinito: não há falecido que não seja da nossa família.
E o miúdo regressou decidido a nunca mais se prestar a aparições. Terça-feira chegou e o patrão, nessa noite, não saiu a rondar os bares. Parecia abatido, doente. Ficou deitado no sofá da sala, olhando para muito nada. Chamou o empregadito e lhe pediu que se transvestisse de Vitória. O miúdo nem respondeu. Surpreso, Jesuzinho ficou a papagaiar baixinho. E se passaram momentos. Até que o jovem serviçal percebeu que o patrão chorava. Se debruçou sobre ele e viu que ladainhava o mesmo de sempre:
Vitorinha!”
O empregado ficou estático. O patrão que implorasse que ele não avançaria um pé. O caneco, afinal, estava bêbado. O hálito não deixava dúvidas. Mas como, se não lhe vira a beber? Tivesse ou não emborcado, o certo é que ele transbordava babas e suspiros. Estava nesse devaneio quando murmurou as mais estranhas palavras: queria encontrar a esposa já devidamente desunhado. Entregando o braço no colo do empregado, implorou:
Me corte a unha, Piquinino!”
No dia seguinte, encontraram o empregado, imóvel junto à poltrona do patrão. O que o moço falou foi para ninguém deitar crédito. O seguinte: mal começou a cortar o rente da unha, o patrão se desvaneceu, como fumo de incenso. E a unha está onde, pá? O miúdo debruçou-se sobre o soalho e levantou o que, por instante, pareceu ser uma desflorida pétala. Sorriu, lembrando o patrão. E exibiu a derradeira extremidade da sua humanidade.
Mia Couto, in Contos do nascer da Terra

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