domingo, 4 de março de 2018

Noiva de Pojuca

Quando Caubi veio de Pojuca, trazia na cabeça a decisão de casar com Lucineia. Só não trouxe Lucineia consigo porque ele não é de avançar sinal. Primeiro, vencer no Rio de Janeiro. Depois, chamar a noiva e, unidos sacramentalmente, serem felizes para sempre.
Vencer no Rio, para quem sai do Recôncavo Baiano, onde o petróleo distribui riqueza global, mas que não chega para os pobres, até que é simples. Emprego de porteiro em edifício da Zona Norte constitui vitória digna de ser contada em carta aos que ficaram e não ousam. A fraternidade dos porteiros baianos, igual à dos cearenses ou paraibanos, não precisa de estatuto para funcionar: logo lhe arranjou o cargo que dá direito a uniforme, cadeira à porta, leitura descansada de jornal à tarde, além do mais gratificante de todos os direitos: o de “assistir”, radinho de pilha ao ouvido, aos gols do Flamengo no Maraca.
Mas há vitória e vitória. Caubi verificou que o ordenado não dava para chamar Lucineia e casar. Ou antes, daria, a longo prazo. A solução era economizar cigarro, cafezinho, batida, jornal, até pilha de radinho. E dar duro na lavagem de carros, pela madrugada.
Enquanto isso, mulheres passavam diante dele, acenando-lhe com casamentos à mão. Rapaz empregado, boa-pinta, que morena o recusaria? Mesmo sem ser de papel passado. Ele, entretanto, resistia. Mulher carioca exige coisas demais, desde geladeira a TV em cores, é um tal de cabeleireiro, de festas, de não sei o quê, de dia e de noite, que pega mal, e acaba, Deus sabe lá como acaba. Caubi passava a mão na testa, alisava-a, determinado: “Comigo não, Serapião”.
Com setecentos cruzeiros na Caixa Econômica, achou que era hora de agir. Alugou um quarto em Queimados, por quarenta mensais, para o lar, e mandou à noiva o dinheiro da passagem de ônibus. Viesse em companhia de seu Severino, amigo da família e homem de respeito, que mora na Ilha do Governador e estava de passeio em Pojuca: seria padrinho do casório.
Lucineia chegou com todos os pertences de uma noiva que se preza. Para conhecer o Rio, antes de se instalar em casa de Padim Severino, passou três dias de favor no apartamento de um casal amigo de Caubi, no edifício em que este trabalha. Foram três dias de esplendor, de ver vitrina e letreiro luminoso, de andar a pé e conhecer todas as praças da Tijuca. O noivo arranjou folgas esparsas, para mostrar-lhe o que é a cidade grande, nos limites do bairro.
Na hora de ir para Governador, os táxis cobravam tanto que Caubi apelou para o motorista do dr. Norberto, baiano também e boa-praça. O rapaz topou levar a moça e seus badulaques no carro do patrão, que que tem? à base de camaradagem.
Levou. Mas não entregou. A meio caminho, a caminhonete que vinha na contramão forçou-o a atirar contra o barranco o fusca do doutor. O estrago não foi grande, mas o conserto da lataria ficava exatamente em setecentos e cinquenta cruzeiros, e como o Caubi ia deixar o amigo pagar a despesa, além do vexame de ter de explicar ao dr. Norberto?
Eu pago o prejuízo, taqui setecentas pratas, o resto dou no mês que vem, amigo velho.
Lucineia, que voltou de ônibus e machucada para o edifício, deixando no asfalto metade de seus trecos, empregou-se de copeira em casa do dr. Norberto. O quarto em Queimados foi desalugado, e o casamento adiado para quando Caubi juntar, não setecentos, mas mil e quatrocentos cruzeiros, a julgar pela taxa de inflação. Desistir de casar com moça de Pojuca ele não desiste, nem que seja preciso, para tão longo amor, passar mais longa vida lavando carros de madrugada. Mas um temor começa a roê-lo, qual bicho em goiaba: se Lucineia, com o tempo, virar moça carioca, que exige tudo, e o casamento acabar, Deus sabe lá, daquele jeito?
Carlos Drummond de Andrade, in 70 historinhas

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