domingo, 4 de março de 2018

Espia-caminho

  
Imagem: Andreas Kay

José Américo de Almeida (A bagaceira, Paraíba, 1928) foi o primeiro a registrar a ojeriza feminina contra uma leguminosa rasteira, vivendo à margem da estrada. “As lavadeiras deitavam a trouxa no chão para arrancá-las ou a espezinhavam furtivamente.” Até poucos anos as mulheres do povo, mesmo carregando água, lenha, voltando com o cesto de frutas tiradas nos matos, detinham-se para destruírem essa plantinha humilde, denominada espia-caminho.
Foi uma complicação para identificar e outra maior para obter a classificação regular. Getúlio César, um mestre do folclore de Pernambuco, matou a questão. Trata-se de uma leguminosa papilonácea, gênero Clitoria, Clitoria cajanifolia, Clitoria guyenensis. Escreve-me Getúlio César: “Cresce um metro ou menos, sem espinhos. Prefere as margens dos caminhos porque é um vegetal exigente; só nasce em terra boa, e as margens dos caminhos são ricos pela poeira, restos de comida, urina e fezes deixadas pelos viandantes e animais. É também conhecida por erva mijona e cascavel, devido às suas vagens, quando secas, terem, quando balançadas, as estridências do guizo da cobra cascavel. A forma das suas flores é que guarda uma modalidade interessante. Apresenta-se como uma boceta feminina, completamente aberta, e uma, de flores escuras e grandes, rara, é chamada boceta-de-negra. As pétalas formam os grandes lábios e, no centro, os estames e androceu, guardados pela carena, que os envolve, dá a parecença de um clitóris; daí o seu gênero clitória. Essa é a razão de as mulheres embirrarem com essa flor. Não é uma superstição. Elas arrancam ou destroem as flores do espia-caminho por julgarem-na imoral. Ouvi de uma camponesa que comigo trabalhava, quando passamos por um renque de espia-caminho: ‘Que fulô mais sem-vergonha! O diabo só nasce nos camin só prá se mostrá, mostrá a sua imoralidade!..”’.
Presentemente a espia-caminho não irrita mais ninguém. Coexistência…
Luís da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz

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