sábado, 24 de março de 2018

Estória de Trancoso

O povo denomina estórias de Trancoso aos contos tradicionais, o documentário mais rico de nossa literatura oral. Trancoso, Gonçalo Fernandes Trancoso, é o autor da primeira coleção de estórias populares em Portugal, Contos e histórias de proveito e exemplo, primeira e segunda partes publicadas em Lisboa por Marcos Borges, 1585, a outra edição em 1589, por João Álvares. Houve uma terceira parte, inédita, divulgada em 1596, por seu filho, Simão Lopes. As três partes, constituindo um só volume, apareceram em 1646, pelo impressor Antônio Alves, com várias reedições nos séculos XVII e XVIII. Em 1921 o Prof. Agostinho de Campos deu uma seleção antológica. São trinta e oito estórias, adaptadas de novelistas italianos e muitas de fonte popular. Trancoso era professor. A popularidade determinou dizer o conto popular estórias de Trancoso, numa generalização consagradora.
A primeira citação no Brasil encontra-se no Diálogos das grandezas do Brasil, III, 1618, onde Alviano diz: “Isto parece-me dos contos do Trancoso e, como tal, não me persuado a dar-lhe crédito”. Não há, entretanto, nenhum elemento sobrenatural no volume. Muitas estórias estão vivas e sabidas no Brasil. Menéndez y Pelayo escreveu o melhor estudo sobre Trancoso (Origenes de la novela), a quem seus patrícios devem uma edição crítica. Por que estória e não história? João Ribeiro aconselhara-a em 1919, mas ficou escrevendo História. Propusemos a grafia em 1941, na Sociedade Brasileira de Folclore, usando-a sem solução de continuidade a partir do ano seguinte. Gustavo Barroso (A Manhã, Rio de Janeiro, 22 de novembro de 1942), comentando os estatutos daquela sociedade, elogiou a iniciativa numa brilhante exposição. Fundamentava-se, sem maior aparato erudito, na distinção imediata e visual entre a História, documentada, verídica, oficial, e o conto popular, como os ingleses têm history e story, podendo entitular uma History of a folk story, como fez Gordon Hall Gerould. História do Brasil. Estória de Trancoso. Vinte e dois anos depois, estória é corrente e comum no Brasil, nos títulos de livros e noticiário de imprensa. Fiquei compensado dos protestos e críticas quando comecei a estória em 1942. Já apareceram, naturalmente, vários pais da criança que a ignoravam nas décadas iniciais, mas estão encantados, vendo-a recepcionada e airosa.
Luís da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz

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