“Você
não sabe o que é viver quase um século”, disse Estevão. “Às
vezes nem eu sei, porque esqueço minha idade, meu aniversário, e às
vezes esqueço que ainda estou neste mundo.”
Estevão,
que mora numa pensão em Santa Cecília, me contou que os hóspedes —
estudantes do interior de São Paulo e do Paraná — o apelidaram de
Eterno. Não gostou do apelido:
“Eterno
é aquele jovem de bermuda que corre todas as manhãs. Eu sou uma
estátua de ossos revestida de pele, uma escultura que se desfaz a
cada dia.”
A
pensão é administrada pelo filho do Eterno, um “garoto” de 53
anos. Estevão desconhece a internet, mas lê jornais e comenta as
notícias com um hóspede ou vizinho; na manhã seguinte tenta
lembrar-se das catástrofes do dia anterior. Come três bananas ao
amanhecer e mais três quando escurece.
“Você
devia comer muitas bananas”, ele me aconselhou. “Graças às
bananas que comi nos últimos trinta e dois anos ainda conservo
momentos de lucidez.”
O
Eterno exagera. É um homem razoavelmente lúcido e de hábitos
severos. E também de temperamento calmo, desde que o assunto não
seja política. Às vezes eu o visito aos sábados na pensão próxima
à Barão de Tatuí, onde ele gosta de observar, sentado numa cadeira
com assento de palha, o movimento da rua e dos hóspedes. Na última
visita, quando me revelou seu apelido, disse que anotava numa
caderneta tudo o que devia fazer, “como ao personagem do romance do
escritor colombiano. O bigodudo”.
“Eu
me identifico com aquele velho enamorado”, ele disse. “Com duas
diferenças: tenho sete anos a mais e não tenho mulher, jovem ou
velha, alegre ou triste. E para que teria? Da cintura para baixo sou
imprestável, inútil.”
Disse
isso enquanto olhava uma hóspede loira, quase nua no calor amazônico
daquela tarde paulistana.
“Eterno,
você está tão elegante”, disse a moça.
“Uma
hóspede de Campinas”, ele observou, folheando com zelo a caderneta
até encontrar o que procurava.
“Essa
beldade me trata com dengo porque deve três meses de aluguel e tem
medo de ser despejada. Meu filho é um bobalhão, fecha os olhos para
os devedores. Quer dizer, para essa princesa inadimplente. Ele pensa
que a nudez da moça pode pagar as despesas da casa. E a gente
trabalha para pagar contas.”
Segurou
o jornal com mãos firmes, de cirurgião. De repente as mãos dele
tremeram, ele me olhou com o rosto contraído e repetiu: “Uma
grande vergonha, mais uma bofetada na nossa cara”.
“De
que o senhor está falando?”
“Esse
homem foi impedido de governar o país e agora foi eleito presidente
de uma comissão no Senado. O povo já se esqueceu disso? Já se
esqueceu da farsa do caçador de marajás?”
“Que
memória admirável, seu Estevão.”
“Minha
memória só retém pesadelos”, ele disse, entortando a boca.
“Quando estou com sorte, lembro cenas de prazer, lampejos…”
Uma
algazarra que vinha do corredor da pensão o interrompeu. Estevão
tentou erguer-se, mas desistiu. Enquanto ele olhava para o interior
da casa, o jornal caiu na calçada; juntei as folhas e dei para ele.
“Quando
os hóspedes fazem essa zoada durante a noite, toco o sino e eles se
acalmam.”
“Sino?”
“O
sino pendurado no teto do meu quarto. Puxo a corda, faço um
estardalhaço de sons, eles sabem que as badaladas pedem silêncio.”
“Dão
festinhas com bebedeira ou conversam em voz alta?”
“Fazem
festas, reuniões, tocam e cantam músicas que não entendo. Minha
esperança é perder a audição nas próximas semanas. Semanas, não.
Meses. Para ser generoso com a minha sobrevivência. Um surdo não
ouve tanto disparate. Eu não ia sentir falta de nada, só da voz dos
meus sambistas preferidos, a música de Cartola, Pixinguinha…”
Ele
me olhou com uma expressão dolorosa, como se lembrasse alguma coisa.
Depois corrigi minha observação: o olhar dele era triste. Mas logo
deu uma risada e abriu o jornal, que tapou seu rosto. Notei que o
jornal estava de ponta-cabeça, mas ele fingiu que estava lendo e eu
fingi que não havia percebido nada.
“Nem
sempre os hóspedes fazem barulho durante a noite”, ele disse, sem
mostrar o rosto. “Aos sábados uma hóspede… Uma mocinha dorme
com um rapaz. Hoje à noite, por exemplo…”
“O
que vai acontecer?”
“Eles
vão namorar. Escuto uma conversinha em voz baixa, um sussurro que
vem do fundo da noite. Depois escuto uns sons maravilhosos, como se
eu estivesse em outro mundo, mas eles é que estão. Ou nós três.
Sons que vão crescendo, até encher o quarto deles, o corredor, a
casa, Santa Cecília, o centro de São Paulo. Gemidos e risadas
agudas, graves.”
“Toca
o sino?”
“Não.
Isso nunca. Saio do meu quarto na ponta dos pés, que nem um ladrão,
ou um cego. Encosto a cabeça na porta do quarto do casal e fico ali,
dormindo em pé, com meus sonhos.”
Parou
de falar e o jornal caiu das mãos dele. Permaneceu com as mãos no
ar, como se segurasse a folha de papel.
O
Eterno chorava em silêncio.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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