Um
rosto proibido desde que crescera. Dominava as paisagens no modo
ativo de agrupar frutos e os comia nas sendas minúsculas das
montanhas, e ainda pela alegria com que distribuía sementes. A cada
terra a sua verdade de semente, ele se dizia sorrindo. Quando se fez
homem encontrou a mulher, ela sorriu, era altiva como ele, embora seu
silêncio fosse de ouro, olhava-o mais do que explicava a história
do universo. Esta reserva mineral o encantava e por ela unicamente
passou a dividir o mundo entre amor e seus objetos. Um amor que se
fazia profundo a ponto de se dedicarem a escavações, refazerem
cidades submersas em lava.
A
aldeia rejeitava o proceder de quem habita terras raras. Pareciam os
dois soldados de uma fronteira estrangeira, para se transitar por
eles, além do cheiro da carne amorosa, exigiam eles passaporte,
depoimentos ideológicos. Eles se preocupavam apenas com o fundo da
terra, que é o nosso interior, ela também completou seu pensamento.
Inspirava-lhes o sentimento a conspiração das raízes que a própria
árvore, atraída pelo sol e exposta à terra, não podia alcançar,
embora se soubesse nelas.
Até
que ele decidiu partir. Competiam-lhe andanças, traçar as linhas
finais de um mapa cuja composição havia se iniciado e ele sabia
hesitante. Explicou à mulher que para a amar melhor não dispensava
o mundo, a transgressão das leis, os distúrbios dos pássaros
migratórios. Ao contrário, as criaturas lhe pareciam em suas
peregrinações simples peças aladas cercando alturas raras.
Ela
reagiu, confiava no choro. Apesar do rosto exibir naqueles dias uma
beleza esplêndida a ponto de ele pensar estando o amor com ela por
que buscá-lo em terras onde dificilmente o encontrarei, insistia na
independência. Sempre os de sua raça adotaram comportamento de
potro. Ainda que ele em especial dependesse dela para reparar certas
omissões fatais.
Viveram
juntos todas as horas disponíveis até a separação. Sua última
frase foi simples: com você conheci o paraíso. A delicadeza comoveu
a mulher, embora os diálogos do homem a inquietassem. A partir desta
data trancou-se dentro de casa. Como os caramujos que se ressentem
com o excesso da claridade. Compreendendo que talvez devesse
preservar a vida de modo mais intenso, para quando ele voltasse. Em
nenhum momento deixava de alimentar a fé, fornecer porções diárias
de carpas oriundas de águas orientais ao seu amor exagerado.
Em
toda a aldeia a atitude do homem representou uma rebelião a se
temer. Seu nome procuravam banir de qualquer conversa. Esforçavam-se
em demolir o rosto livre e sempre que passavam pela casa da mulher
faziam de conta que jamais ela pertencera a ele. Enviavam-lhe
presentes, pedaços de toicinho, cestas de pêra, e poesias esparsas.
Para que ela interpretasse através daqueles recursos o quanto a
consideravam disponível, sem marca de boi e as iniciais do homem em
sua pele.
A
mulher raramente admitia uma presença em sua casa. Os presentes
entravam pela janela da frente, sempre aberta para que o sol
testemunhasse a sua própria vida, mas abandonavam a casa pela porta
dos fundos, todos aparentemente intocáveis. A aldeia ia lá para
inspecionar os objetos que de algum modo a presenciaram e eles não,
pois dificilmente aceitavam a rigidez dos costumes. Às vezes ela se
socorria de um parente, para as compras indispensáveis. Deixavam
eles então os pedidos aos seus pés, e na rápida passagem pelo
interior da casa procuravam a tudo investigar. De certo modo ela
consentia para que vissem o homem ainda imperar nas coisas sagradas
daquela casa.
Jamais
faltou uma flor diariamente renovada próxima ao retrato do homem.
Seu semblante de águia. Mas, com o tempo, além de mudar a cor do
vestido, antes triste agora sempre vermelho, e alterar o penteado,
pois decidira manter os cabelos curtos, aparados rentes à cabeça —
decidiu por eliminar o retrato. Não foi fácil a decisão. Durante
dias rondava o retrato, sondou os olhos obscuros do homem, ora o
condenava, ora o absolvia: porque você precisou da sua rebeldia, eu
vivo só, não sei se a guerra tragou você, não sei sequer se devo
comemorar sua morte com o sacrifício da minha vida.
Durante
a noite, confiando nas sombras, retirou o retrato e o jogou rudemente
sobre o armário. Pôde descansar após a atitude assumida. Acreditou
deste modo poder provar aos inimigos que ele habitava seu corpo
independente da homenagem. Talvez tivesse murmurado a algum dos
parentes, entre descuidada e oprimida, que o destino da mulher era
olhar o mundo e sonhar com o rei da terra.
Recordava
a fala do homem em seus momentos de tensão. Seu rosto então
igualava-se à pedra, vigoroso, uma saliência em que se inscreveria
uma sentença, para permanecer. Não sabia quem entre os dois era
mais sensível à violência. Ele que se havia ido, ela que tivera
que ficar. Só com os anos foi compreendendo que se ele ainda vivia
tardava a regressar. Mas, se morrera, ela dependia de algum sinal
para providenciar seu fim. E repetia temerosa e exaltada: algum sinal
para providenciar meu fim. A morte era uma vertente exagerada, pensou
ela olhando o pálido brilho das unhas, as cortinas limpas, e começou
a sentir que unicamente conservando a vida homenagearia aquele amor
mais pungente que búfalo, carne final da sua espécie, embora
tivesse conhecido a coroa quando das planícies.
Quando
já se tornava penoso em excesso conservar-se dentro dos limites da
casa, pois começara a agitar nela uma determinação de amar apenas
as coisas venerandas, fossem pó, aranha, tapete rasgado, panela sem
cabo, como que adivinhando ele chegou. A aldeia viu o modo de ele
bater na porta com a certeza de se avizinhar ao paraíso. Bateu três
vezes, ela não respondeu. Mais três e ela, como que tangida à
reclusão, não admitia estranhos. Ele ainda herói bateu algumas
vezes mais, até que gritou seu nome, sou eu, então não vê, então
não sente, ou já não vive mais, serei eu logo o único a cumprir a
promessa?
Ela
sabia agora que era ele. Não consultou o coração para agitar-se,
melhor viver a sua paixão. Abriu a porta e fez da madeira seu
escudo. Ele imaginou que escarneciam da sua volta, não restava
alegria em quem o recebia. Ainda apurou a verdade: se não for você,
nem preciso entrar. Talvez tivesse esquecido que ele mesmo
manifestara um dia que seu regresso jamais seria comemorado, odiaria
o povo abundante na rua vendo o silêncio dos dois após tanto
castigo.
Ela
assinalou na madeira a sua resposta. E ele achou que devia
surpreendê-la segundo o seu gosto. Fingia a mulher não perceber seu
ingresso casa adentro, mais velho sim, a poeira colorindo original as
suas vestes. Olharam-se como se ausculta a intrepidez do cristal,
seus veios limpos, a calma de perder-se na transparência. Agarrou a
mão da mulher, assegurava-se de que seus olhos, apesar do pecado das
modificações, ainda o enxergavam com o antigo amor, agora mais
provado.
Disse-lhe:
voltei. Também poderia ter dito: já não te quero mais. Confiava na
mulher; ela saberia organizar as palavras expressas com descuido. Nem
a verdade, ou sua imagem contrária, denunciaria seu hino interior.
Deveria ser como se ambos conduzindo o amor jamais o tivessem
interrompido.
Ela
o beijou também com cuidado. Não procurou sua boca e ele se deixou
comovido. Quis somente sua testa, alisou-lhe os cabelos. Fez-lhe ver
o seu sofrimento, fora tão difícil que nem seu retrato pôde
suportar. Onde estive então nesta casa, perguntou ele, procure e em
achando haveremos de conversar. O homem se sentiu atingido por tais
palavras. Mas as peregrinações lhe haviam ensinado que mesmo para
dentro de casa se trazem os desafios.
Debaixo
do sofá, da mesa, sobre a cama, entre os lençóis, mesmo no
galinheiro, ele procurou, sempre prosseguindo, quase lhe perguntava:
estou quente ou frio. A mulher não seguia suas buscas, agasalhada em
um longo casaco de lã, agora descascava batatas imitando as mulheres
que encontram alegria neste engenho. Esta disposição da mulher como
que o confortava. Em vez de conversarem, quando tinham tanto a se
dizer, sem querer eles haviam começado a brigar. E procurando ele
pensava onde teria estado quando ali não estava, ao menos
visivelmente pela casa.
Quase
desistindo encontrou o retrato sobre o armário, o vidro da moldura
todo quebrado. Ela tivera o cuidado de esconder seu rosto entre cacos
de vidro, quem sabe tormentas e outras feridas mais. Ela o trouxe
pela mão até a cozinha. Ele não se queria deixar ir. Então, o que
queres fazer aqui? Ele respondeu: quero a mulher. Ela consentiu.
Depois porém ela falou: agora me siga até a cozinha.
— O
que há na cozinha?
Deixou-o
sentado na cadeira. Fez a comida, se alimentaram em silêncio. Depois
limpou o chão, lavou os pratos, fez a cama recém-desarrumada, tirou
o pó da casa, abriu todas as janelas quase sempre fechadas naqueles
anos de sua ausência. Procedia como se ele ainda não tivesse
chegado, ou como se jamais houvesse abandonado a casa, mas se faziam
preparativos sim de festa. Vamos nos falar ao menos agora que eu
preciso?, ele disse.
— Tenho
tanto a lhe contar. Percorri o mundo, a terra, sabe, e além do mais…
Eu
sei, ela foi dizendo depressa, não consentindo que ele dissertasse
sobre a variedade da fauna, ou assegurasse a ela que os rincões
distantes ainda que apresentem certas particularidades de algum modo
são próximos a nossa terra, de onde você nunca se afastou porque
você jamais pretendeu a liberdade como eu. Não deixando que lhe
contasse, sim que as mulheres, embora louras, pálidas, morenas e de
pele de trigo, não ostentavam seu cheiro, a ela, ele a identificaria
mesmo de olhos fechados. Não deixando que ela soubesse das suas
campanhas: andou a cavalo, trem, veleiro, mesmo helicóptero, a terra
era menor do que supunha, visitara a prisão, razão de ter
assimilado uma rara concentração de vida que em nenhuma parte senão
ali jamais encontrou, pois todos os que ali estavam não tinham outro
modo de ser senão atingindo diariamente a expiação.
E
ela, não deixando ele contar o que fora o registro da sua vida, ia
substituindo com palavras dela então o que ela havia sim vivido. E
de tal modo falava como se ela é que houvesse abandonado a aldeia,
feito campanhas abolicionistas, inaugurado pontes, vencido domínios
marítimos, conhecido mulheres e homens, e entre eles se perdendo
pois quem sabe não seria de sua vocação reconhecer pelo amor as
criaturas. Só que ela falando dispensava semelhantes assuntos, sua
riqueza era enumerar com volúpia os afazeres diários a que estivera
confinada desde a sua partida, como limpava a casa, ou inventara um
prato talvez de origem dinamarquesa, e o cobriu de verdura, diante
dele fingia-se coelho, logo assumindo o estado que lhe trazia graça,
alimentava-se com a mão e sentia-se mulher; como também simulava
escrever cartas jamais enviadas pois ignorava onde encontrá-lo; o
quanto fora penoso decidir-se sobre o destino a dar a seu retrato,
pois, ainda que praticasse a violência contra ele, não podia
esquecer que o homem sempre estaria presente; seu modo de descascar
frutas, tecendo delicadas combinações de desenho sobre a casca, ora
pondo em relevo um trecho maior da polpa, ora deixando o fruto
revestido apenas de rápidos fiapos de pele; e ainda a solução
encontrada para se alimentar sem deixar a fazenda em que sua casa se
convertera, cuidara então em admitir unicamente os de seu sangue sob
condição da rápida permanência, o tempo suficiente para que eles
vissem que apesar da distância do homem ela tudo fazia para
homenageá-lo, alguns da aldeia porém, que ele soubesse agora,
teimaram em lhe fazer regalos, que, se antes a irritavam, terminaram
por agradá-la.
— De
outro modo, como vingar-me deles?
Recolhia
os donativos, mesmo os poemas, e deixava as coisas permanecerem sobre
a mesa por breves instantes, como se assim se comunicasse com a vida.
Mas, logo que todas as reservas do mundo que ela pensava existirem
nos objetos se esgotavam, ela os atirava à porta dos fundos.
Confiava que eles próprios recolhessem o material para não
deteriorar em sua porta.
E
tanto ela ia relatando os longos anos de sua espera, um cotidiano que
em sua boca alcançava vigor, que temia ele interromper um só
momento o que ela projetava dentro da casa como se cuspisse pérolas,
cachorros miniaturas, e uma grama viçosa, mesmo a pretexto de viver
junto com ela as coisas que ele havia vivido sozinho. Pois quanto
mais ela adensava a narrativa, mais ele sentia que além de a ter
ferido com o seu profundo conhecimento da terra, o seu profundo
conhecimento da terra afinal não significava nada. Ela era mais
capaz do que ele de atingir a intensidade, e muito mais sensível
porque viveu entre grades, mais voluntariosa por ter resistido com
bravura os galanteios. A fé que ele com neutralidade dispensara ao
mundo a ponto de ser incapaz de recolher de volta para seu corpo o
que deixara tombar indolente, ela soubera fazer crescer, e
concentrara no domínio da sua vida as suas razões mais intensas.
À
medida que as virtudes da mulher o sufocavam, as suas vitórias e
experiências iam-se transformando em uma massa confusa,
desorientada, já não sabendo ele o que fazer dela. Duvidava mesmo
se havia partido, se não teria ficado todos estes anos a apenas
alguns quilômetros dali, em degredo como ela, mas sem igual poder
narrativo.
Seguramente
ele não lhe apresentava a mesma dignidade, sequer soubera conquistar
seu quinhão na terra. Nada fizera senão andar e pensar que aprendeu
verdades diante das quais a mulher haveria de capitular. No entanto,
ela confessando a jornada dos legumes, a confecção misteriosa de
uma sopa, selava sobre ele um penoso silêncio. A vergonha de ter
composto uma falsa história o abatia. Sem dúvida estivera ali com a
mulher todo o tempo, jamais abandonara a casa, a aldeia, o torpor a
que o destinaram desde o nascimento, e cujos limites ele altivo
pensou ter rompido.
Ela
não cessava de se apoderar das palavras, pela primeira vez em tanto
tempo explicava sua vida, tinha prazer de recolher no ventre, como um
tumor que coça as paredes íntimas, o som da sua voz. E, enquanto
ouvia a mulher, devagar ele foi rasgando o seu retrato, sem ela o
impedir, implorasse não, esta é a minha mais fecunda lembrança.
Comprazia-se com a nova paixão, o mundo antes obscurecido que ela
descobriu ao retorno do homem.
Ele
jogou o retrato picado no lixo e seu gesto não sofreu ainda desta
vez advertência. Os atos favoreciam a claridade e, para não esgotar
as tarefas a que pretendia dedicar-se, ele foi arrumando a casa,
passou pano molhado nos armários, fingindo ouvi-la ia esquecendo a
terra no arrebato da limpeza. E, quando a cozinha se apresentou
imaculada, ele recomeçou tudo de novo, então descascando frutas
para a compota enquanto ela lhe fornecia histórias indispensáveis
ao mundo que precisaria apreender uma vez que a ele pretendia
dedicar-se para sempre. Mas de tal modo agora arrebatava-se que
parecia distraído, como pudesse dispensar as palavras encantadas da
mulher para adotar afinal o seu universo.
Nélida
Piñon, in Sala de armas
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