A
onde — o despovoado, o povoadozinho palustre, em feio o mau sertão
— onde podia haver assombros? Trouxe-se lá Drizilda, de nem quinze
anos, que mais não chorava: firme delindo-se, terminalvelmente,
sozinha viúva. Descontado que a esquecessem. Ela era quase bela; e
alongavam-se-lhe os cabelos. A flor é só flor. A alegria de Deus
anda vestida de amarguras.
De
déu em doendo, à desvalença, para no retiramento ficar sempre
vivendo, desde desengano. O irmão matara-lhe o marido, irregrado,
revelde, que a desdenhava. De não ter filhos? Estranhos culpando-a,
soante o costume, e o povo de parentes: fadada ao mal, nefandada.
Tanto vai a nada a flor, que um dia se despetala.
Mandaram-na
e quis, furtadamente, para não encarar com ninguém, forrar-se a
reprovas, dizques, piedade. Toda grande distância pode ser celeste.
Trás a dobrada serrania, ao último lugar do mundo, fim de som, do
ido outro-lado. Arroio-das-Antas — onde só restavam velhos, mais
as sobejas secas velhinhas, tristilendas. Pois era assim que era,
havendo muita realidade. Que faziam essas almas?
Rodearam-na
— solertes, duvidando, diversas — até ao coaxar da primeira rã.
Nem achavam o acervo de perguntas, entre outroras. Seus olhos punham
palavras e frases. Viera-lhes a moça, primor, mais vaga e clara que
um pensamento; tinham, à fria percepção, de tê-la em mal ou em
bem.
Dali
— recanto agarrado e custoso, sem aconteceres — homens e mulheres
cedo saíam, para tamanho longe; e, aquela, chegava? Tão não sabida
nem possível, o comum não a minguando: como todo ser, coagido a
calar-se, comove.
Sós,
após, disputavam ainda, a bisbilhar, em roda, as candeias acesas.
Nenhuma delas ganhara da vida jamais o muito — que ignoravam que
queriam — feito romance, outra maneira de alma. O que a gente
esperava era a noite. Mas a velhice era-lhes portentosa lanterna,
arrulhavam ao Espírito-Santo.
Senão
que, uma, avó Edmunda, sob mínima voz, abençoou-a: — “Meu
cravinho branco...” Outra por ela puniu, afetando-se áspera:
—“Gente invencioneira!” Suspiraram mor, em giro doce,
enfim, entreentendidas, aguadas as vistas, com uma ternura que era
quase uma saudade.
Drizilda
depôs-se, sacudidos os cabelos, quisesse um parar — devagarzinho
quietante — no limbo, no olvido, no não abolido. Fez tenção: de
trabalhar, sobre só, ativa inertemente; sarado o dó de lembranças,
afundando-se os dias, fora já de sobressaltos.
Sofria,
sofria, enquanto a noite. Culpa capital — em escrúpulo e recato, o
delicado sofrimento, breve como uma pena de morte, peso de ninguém
levantar. O marido, na cova; o irmão, preso condenado; rivais, os
dois, por uma outra mulher, incerta ditosa, formosa... Deus é quem
sabe o por não vir. A gente se esquece — e as coisas lembram-se da
gente.
Por
maiormente, o lugar — soledade, o ar, longas aves em curto céu —
em que, múrmuras, nos fichus, sábias velhinhas se aconselhavam.
Aqui, não deviam de estender notícias, o muito vulgado. Calava-se a
ternura — infinito monossílabo. O que não pudera, nem soubera;
não havendo um recomeçar. Pagava o mourejo, fado, sumida em si,
vendo o chão, mentindo para a alma. Sem senhor, sem sombras, tão
lesada; como as mais do campo, amarelas ou roxas, florzinha de má
sorte? Um cachorro passava por ali, de volta para alguma infância.
Desse tempo para a frente. Vigiavam-na as velhas, sem palavras.
Tramavam
já com Deus, em bico de silêncio, as quantas criaturas comedidas.
De vê-la a borralheirar, doíam-se, passarinho na muda, flor, que ao
fim se fana; nem podendo diverti-la, dentro em si, desse desistir.
Mas, pretendiam mais. Tomavam, todas juntas, a fé de mortificadas
orações, novenas, nôminas, setêmplices. — “Deus e glória!”
— adivinhavam, sérias de amor, se entusiasmavam. Elas, para o
queimar e ferver de Deus, decerto prestassem — feixe de lenhazinha
enxuta. Para o forçoso milagre!
Falava-se
de uma ternura perfeita, ainda nem existente; o bem-querer sem
descrença. Enquanto isso, o tempo, como sempre, fingia que passava.
As velhinhas pactuavam a alegria de penar e mesmo abreviadas irem-se
— a fito de que neste sertão vingassem ao menos uma vez a graça e
o encanto.
Drizilda
estremunhava-se, na disquietação, ainda com medrosas pálpebras
primitivas. Aqui ninguém viesse — o mundo todo invisível — só
a virtude demorã, senhas de Maria e de Cristo, os cães com ternura
nas narinas, borboletas terra-a-terra. Ela queria a saudade. Ora
chovia ou sol, nhoso lazer, enfadonhação, lutas luas de luar,
nuvens nadas. Sua saudade — tendência secreta — sem memória.
Ela, maternal com suas velhinhas, custódias, menina amante: a
vovozinha... Moviam-na adiante, sob irresistíveis eflúvios,
aspergiam-na, persignavam-lhe o travesseiro e os cabelos.
Comutava-se. Olhos de receber, a cabeça de lado feito a aceitar
carinho — sorria, de dom.
Sua
saudade cantava na gaiolazinha; não esperar inclui misteriosas
certezas. Vinham as velhas, circulavam-na. Alguma proferia: — “Todo
dia é véspera...” — e muito quando. Viam-na em rebroto —
o ardente da vida — que, a tanto, um dia, ao fim, da haste se
quebra. Rezavam, jejuavam, exigiam, trêmulas, poderosas,
conspiravam.
A
avó Edmunda, de repente, então. — “Morreu, morreu de
penitências!” — a triunfar, em ordem, tão anciãs, as
outras jubilavam.
Saía
o enterro — Drizilda adiante, com a engrinaldada cruz — murchas,
finais, as velhinhas, à manhã, mais almas.
E
vinha de lá um cavalo grande, na ponta de uma flecha — entrante à
estrada. Em galope curto, o Moço, que colheu rédea, recaracolando,
desmontou-se, descobriu-se. Senhorizou-se: olhos de dar, de lado a
mão feito a fazer carícia — sorria, dono. Nada; senão que a
queria e amava, trespassava-se de sua vista e presença.
Ela
percebeu-o puramente; levantou a beleza do rosto, reflor. Ia. E disse
altinho um segredo: — “Sim”. Só o almêjo débil,
entrepalpitado, que em volta as velhinhas agradeciam.
Assim
são lembrados em par os dois — entreamor — Drizilda e o Moço,
paixão para toda a vida. Aqui, na forte Fazenda, feliz que se ergueu
e inda hoje há, onde o Arroio.
Guimarães
Rosa, in Tutameia
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