segunda-feira, 26 de março de 2018

A dama cujo amor Ulrich conquistou depois de uma conversa sobre esporte e mística

Afinal, também Bonadéia aspirava às grandes ideias. Bonadéia era a dama que salvara Ulrich naquela sua infeliz noite de boxeador, e na manhã seguinte o visitara, coberta de espessos véus. Ele a batizara Bonadéia, a boa deusa, por ter entrado daquele modo em sua vida, e também segundo o nome de uma deusa da castidade que tivera, na velha Roma, um templo que, por uma bizarra inversão, se tornara centro de todos os excessos. Aquele nome sonoro que Ulrich lhe dera agradou à dama, e ela o usava nas suas visitas, como um traje luxuosamente bordado.
Então eu sou a sua boa deusa — perguntou —, a sua bona dea? — E para pronunciar corretamente essas duas palavras passava os braços pelo pescoço dele e o encarava, emocionada, a cabeça levemente inclinada para trás.
Era esposa de um homem importante, e mãe carinhosa de dois belos meninos. Sua expressão preferida era “decentíssimo”, e aplicava-a a pessoas, criados, negócios e sentimentos, sempre que queria fazer-lhes um elogio. Era capaz de dizer “o que é verdadeiro, bom e belo” com a mesma frequência e naturalidade com que as outras pessoas dizem “quinta-feira”. O que mais satisfazia à sua necessidade de ideias era imaginar uma vida sossegada e idealizada no círculo do marido e dos filhos, e, muito abaixo, o mundo sombrio do “não me deixes cair em tentação”, com seu horror enevoando aquela felicidade radiante, transformando-a em fraca luz de lâmpada. Ela só tinha um defeito: a simples visão de um homem a excitava de maneira incrível. Não que fosse lasciva; era sensual, como outras pessoas têm lá seus problemas, por exemplo, transpirar nas mãos ou corar com facilidade. Aparentemente nascera assim, e não o conseguia evitar. Quando conhecera Ulrich, em condições tão romanescas que lhe excitavam a fantasia, tornara-se no mesmo momento vítima de uma paixão que começara como piedade, mas depois de breve e intensa luta transformou-se em emoções secretas e proibidas, continuando então como alternantes acessos de pecado e remorso.
Ulrich era mais um dos incontáveis casos em sua vida. Os homens, percebendo uma tal situação, costumam tratar essas mulheres sedentas de amor como tratariam idiotas a quem se engana com os truques mais tolos, fazendo-os cair sempre no mesmo tropeço. Pois os mais delicados sentimentos masculinos são mais ou menos como o rosnado de um tigre diante de um naco de carne, e qualquer coisa que os perturba os irrita imensamente. Assim, muitas vezes Bonadéia levava uma vida dupla, como qualquer cidadão respeitável que nas fiestas mais sombrias da consciência é um assaltante de trens; portanto, sempre que não estava nos braços de um homem, aquela dama tranquila e majestosa sentia-se sufocar de autodesprezo devido às mentiras e humilhações a que se expunha para ser abraçada. Quando excitada, era melancólica e bondosa, numa mescla de fervor e lágrimas, brutal naturalidade e inevitável remorso.
Quando seu fervor se retraía à depressão iminente, ela adquiria um encanto excitante como o rufar de um tambor envolto em panos negros.
Mas no intervalo entre duas crises, no remorso entre duas fraquezas, quando sentia sua impotência, ela assumia muitas pretensões à respeitabilidade, que tornavam o convívio complicado. Queria que todos fossem bons e verdadeiros, compassivos para com as desgraças, amantes da família imperial, respeitando tudo o que era respeitável e tão delicados em assuntos morais como quem estivesse à cabeceira de um doente.
Mas mesmo que isso não acontecesse, nada mudava no curso dos fatos. Para desculpar-se, inventara a lenda de que, nos primeiros inocentes anos de casados, o marido é que a deixara naquele triste estado. O marido, muito mais velho e fisicamente maior que ela, parecia então um monstro de brutalidade, e já nas primeiras horas do novo amor ela mencionara isso a Ulrich, com uma tristeza ambígua. Só mais tarde ele descobriria que o marido era um jurista respeitado e conhecido, eficiente na profissão, um inofensivo aficcionado de caçadas, visitante muito querido de várias rodas de caçadores e de juristas, onde se debatiam questões masculinas em vez de arte e amor. O único erro desse homem bondoso e alegre, um tanto ingênuo, era ser casado com aquela esposa, e por isso mais frequentemente do que outros homens manter com ela aquela relação que em linguagem jurídica se chama de “relação de circunstância”. O efeito moral de submeter-se anos a fio a uma pessoa com que se casara mais por esperteza do que por afeto formara em Bonadéia a ilusão de ser fisicamente superexcitável, tornando essa ideia quase que independente de sua consciência. Uma força interior, que ela mesma não entendia, ligava-a àquele homem favorecido pelas circunstâncias; desprezava-o por sua própria fraqueza de vontade, e sentia-se fraca demais para o poder desprezar; traía-o para fugir dele, mas nos momentos mais inadequados falava dele e dos filhos que tivera com ele, e nunca conseguia libertar-se dele inteiramente. Por fim, como muitas mulheres infelizes, num espaço oscilante, apoiava-se exatamente naquela repulsa pelo sólido esposo, e transferia seu conflito com ele para cada nova experiência que a deveria dele livrar.
Praticamente, nada restava para acalmar suas dores do que lançar-se rapidamente da depressão para o fervor. Mas aos homens que isso concretizavam e se aproveitavam de sua fraqueza, ela negava ao mesmo tempo qualquer intenção nobre; e quando se “inclinava” para esse novo homem, como costumava dizer com objetividade científica, o sofrimento cobria seus olhos com um véu de úmida ternura.
Robert Musil, in O homem sem qualidades

Nenhum comentário:

Postar um comentário