Afinal,
também Bonadéia aspirava às grandes ideias. Bonadéia era a dama
que salvara Ulrich naquela sua infeliz noite de boxeador, e na manhã
seguinte o visitara, coberta de espessos véus. Ele a batizara
Bonadéia, a boa deusa, por ter entrado daquele modo em sua vida, e
também segundo o nome de uma deusa da castidade que tivera, na velha
Roma, um templo que, por uma bizarra inversão, se tornara centro de
todos os excessos. Aquele nome sonoro que Ulrich lhe dera agradou à
dama, e ela o usava nas suas visitas, como um traje luxuosamente
bordado.
— Então
eu sou a sua boa deusa — perguntou —, a sua bona dea? —
E para pronunciar corretamente essas duas palavras passava os braços
pelo pescoço dele e o encarava, emocionada, a cabeça levemente
inclinada para trás.
Era
esposa de um homem importante, e mãe carinhosa de dois belos
meninos. Sua expressão preferida era “decentíssimo”, e
aplicava-a a pessoas, criados, negócios e sentimentos, sempre que
queria fazer-lhes um elogio. Era capaz de dizer “o que é
verdadeiro, bom e belo” com a mesma frequência e naturalidade com
que as outras pessoas dizem “quinta-feira”. O que mais satisfazia
à sua necessidade de ideias era imaginar uma vida sossegada e
idealizada no círculo do marido e dos filhos, e, muito abaixo, o
mundo sombrio do “não me deixes cair em tentação”, com seu
horror enevoando aquela felicidade radiante, transformando-a em fraca
luz de lâmpada. Ela só tinha um defeito: a simples visão de um
homem a excitava de maneira incrível. Não que fosse lasciva; era
sensual, como outras pessoas têm lá seus problemas, por exemplo,
transpirar nas mãos ou corar com facilidade. Aparentemente nascera
assim, e não o conseguia evitar. Quando conhecera Ulrich, em
condições tão romanescas que lhe excitavam a fantasia, tornara-se
no mesmo momento vítima de uma paixão que começara como piedade,
mas depois de breve e intensa luta transformou-se em emoções
secretas e proibidas, continuando então como alternantes acessos de
pecado e remorso.
Ulrich
era mais um dos incontáveis casos em sua vida. Os homens, percebendo
uma tal situação, costumam tratar essas mulheres sedentas de amor
como tratariam idiotas a quem se engana com os truques mais tolos,
fazendo-os cair sempre no mesmo tropeço. Pois os mais delicados
sentimentos masculinos são mais ou menos como o rosnado de um tigre
diante de um naco de carne, e qualquer coisa que os perturba os
irrita imensamente. Assim, muitas vezes Bonadéia levava uma vida
dupla, como qualquer cidadão respeitável que nas fiestas mais
sombrias da consciência é um assaltante de trens; portanto, sempre
que não estava nos braços de um homem, aquela dama tranquila e
majestosa sentia-se sufocar de autodesprezo devido às mentiras e
humilhações a que se expunha para ser abraçada. Quando excitada,
era melancólica e bondosa, numa mescla de fervor e lágrimas, brutal
naturalidade e inevitável remorso.
Quando
seu fervor se retraía à depressão iminente, ela adquiria um
encanto excitante como o rufar de um tambor envolto em panos negros.
Mas
no intervalo entre duas crises, no remorso entre duas fraquezas,
quando sentia sua impotência, ela assumia muitas pretensões à
respeitabilidade, que tornavam o convívio complicado. Queria que
todos fossem bons e verdadeiros, compassivos para com as desgraças,
amantes da família imperial, respeitando tudo o que era respeitável
e tão delicados em assuntos morais como quem estivesse à cabeceira
de um doente.
Mas
mesmo que isso não acontecesse, nada mudava no curso dos fatos. Para
desculpar-se, inventara a lenda de que, nos primeiros inocentes anos
de casados, o marido é que a deixara naquele triste estado. O
marido, muito mais velho e fisicamente maior que ela, parecia então
um monstro de brutalidade, e já nas primeiras horas do novo amor ela
mencionara isso a Ulrich, com uma tristeza ambígua. Só mais tarde
ele descobriria que o marido era um jurista respeitado e conhecido,
eficiente na profissão, um inofensivo aficcionado de caçadas,
visitante muito querido de várias rodas de caçadores e de juristas,
onde se debatiam questões masculinas em vez de arte e amor. O único
erro desse homem bondoso e alegre, um tanto ingênuo, era ser casado
com aquela esposa, e por isso mais frequentemente do que outros
homens manter com ela aquela relação que em linguagem jurídica se
chama de “relação de circunstância”. O efeito moral de
submeter-se anos a fio a uma pessoa com que se casara mais por
esperteza do que por afeto formara em Bonadéia a ilusão de ser
fisicamente superexcitável, tornando essa ideia quase que
independente de sua consciência. Uma força interior, que ela mesma
não entendia, ligava-a àquele homem favorecido pelas
circunstâncias; desprezava-o por sua própria fraqueza de vontade, e
sentia-se fraca demais para o poder desprezar; traía-o para fugir
dele, mas nos momentos mais inadequados falava dele e dos filhos que
tivera com ele, e nunca conseguia libertar-se dele inteiramente. Por
fim, como muitas mulheres infelizes, num espaço oscilante,
apoiava-se exatamente naquela repulsa pelo sólido esposo, e
transferia seu conflito com ele para cada nova experiência que a
deveria dele livrar.
Praticamente,
nada restava para acalmar suas dores do que lançar-se rapidamente da
depressão para o fervor. Mas aos homens que isso concretizavam e se
aproveitavam de sua fraqueza, ela negava ao mesmo tempo qualquer
intenção nobre; e quando se “inclinava” para esse novo homem,
como costumava dizer com objetividade científica, o sofrimento
cobria seus olhos com um véu de úmida ternura.
Robert
Musil, in O homem sem qualidades
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