Tudo
acabou em 1975, na terrível geada de julho. Lembro os dias
ensolarados do outono e a última colheita no cafezal antes da
primeira manhã fria, quando o campo ficou coberto de agulhas de
gelo. O cafezal parecia uma manta de sal grosso. O orvalho daquele
inverno foi uma desgraça.
Eu
cozinhava para os patrões, passava os grãos de café no moedor e
preparava um café forte de manhãzinha. Isso me dava prazer. O café
que uma neta de poloneses servia para filhos de alemães na época
gloriosa dessa região. Era uma região selvagem; meu pai, jovem,
ajudou a desbravar esta terra para os ingleses da Companhia de Terras
do Norte do Paraná; depois da Segunda Guerra, ele foi trabalhar numa
gleba de Nova Dantzig, o antigo nome de Cambé. Ele conheceu minha
mãe na Colônia Bratislava, onde meu avô materno tinha um sítio.
Meus pais morreram lá mesmo, quando eu era criança.
Andei
por todo esse norte, por toda essa terra vermelha, arroxeada, essa
terra que já foi uma floresta de cedros, perobas e ipês. Eu sou de
Guarapuava, de Cambé, Pinhão, Bratislava, conheço tantas cidades…
Mas eu gostei mesmo foi deste lugar. Da casa de madeira, onde morei
com o meu marido, o caseiro dos alemães. Foi assassinado por uns
bandidos que perseguiam outro homem, mas confundiram este homem com o
meu e mataram um inocente. Meu patrão tentou fazer justiça, mas os
matadores eram capangas de políticos, gente bárbara, bichos, pior
que bichos. Foi recurso atrás de recurso e a justiça não deu em
nada.
Envelheci
sem ver os assassinos do meu marido na cadeia. Mais um crime
esquecido. Lembro que meu patrão ficou furioso, mais vermelho que
esta terra, ele até disse: “Se não tem justiça, não tem
futuro”. E gritou uns palavrões na língua dele, não entendi
nada, mas posso imaginar. Ele e a patroa me deixaram morar na casa de
peroba.
Meus
avós poloneses odiavam os alemães e os russos, também diziam
palavrões em polonês, e isso eu entendia. Só não entendia a razão
de tanto ódio. Histórias de guerra. Mas eu sou brasileira, uma
paranaense de Bratislava. Elzibieta, meu nome de batismo. Ficou Bete,
mais fácil. Polaca, como dizem.
Quando
enviuvei, não quis mais saber de homem. Eu cozinhava, passava a
roupa, servia o café colhido na lavoura, torrado aqui mesmo. Não
era um fazendão, mas tinha horta, pomar, tudo. E vacas leiteiras:
zebus. Minha patroa me ajudava a fazer queijo e doce de leite. Eu
lavava a roupa no rio, tomava banho na nascente, cuidava das
crianças, passeava com elas. Um rio lindo: esse mesmo rio. O céu no
entardecer ficava coalhado de pombinhas e maritacas, parecia uma
poeira verde no azul, mil asas escuras que faziam estardalhaço. Era
bonito e me ajudava a viver. Na casa e na lavoura tinha hora para
tudo: os alemães pareciam relógios no campo.
Depois
da geada de 1975 eles compraram uma casa de madeira em Cambé; o
patrão disse que era a minha casa. Ele vendeu a fazenda, o novo
proprietário plantou cana, mandou derrubar as paredes da sede e da
casa onde eu morava. Não retiraram os entulhos nem os móveis, nada.
Venho para cá um domingo por mês e sento em frente dessa lareira,
onde eu brincava com as crianças depois do almoço. Escovava os
dentes dos meninos naquela pia que está no chão, no meio de
azulejos quebrados. E, quando o cuco cantava quatro horas, eu levava
as crianças para a beira do rio. Nosso domingo era assim: um passeio
de manhã pela lavoura, depois eu acompanhava as crianças até a
nascente do rio; à tarde nós nadávamos e ríamos com a gritaria
das maritacas. De noitinha eu dava banho nos meninos, e antes de
dormir eu rezava e me lembrava do meu marido. Aquele cercado com base
de tijolos era o nosso quarto. Fecho os olhos e imagino a nossa casa,
as noites que dormimos juntos, o corpo do homem que eu amava. Ainda
bem que deixaram esse entulho. Posso imaginar as duas casas e o tempo
que vivi aqui. Isso me dá esperança e paz. É o melhor domingo do
mês.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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