Seja
aquela uma noite solitária, e não digna de louvor.
(Jó
, III, 7)
Nem
luz, nem luar. O céu e as ruas permaneciam escuros, prejudicando, de
certo modo, os meus desígnios. Sólida, porém, era a minha
paciência e eu nada fazia senão vigiar os passos de Cris. Todas as
noites, após o jantar, esperava-o encostado ao muro da sua
residência, despreocupado em esconder-me ou tomar qualquer precaução
para fugir aos seus olhos, pois nunca se inquietava com o que poderia
estar se passando em torno dele. A profunda escuridão que nos
cercava e a rapidez com que, ao sair de casa, ganhava o passeio
jamais me permitiram ver-lhe a fisionomia. Resoluto, avançava pela
calçada, como se tivesse um lugar certo para ir. Pouco a pouco, os
seus movimentos tornavam-se lentos e indecisos, desmentindo- -lhe a
determinação anterior. Acompanhava-o com dificuldade. Sombras
maliciosas e traiçoeiras vinham a meu encontro, forçando-me a
enervantes recuos. O invisível andava pelas minhas mãos, enquanto
Cris, sereno e desembaraçado, locomovia-se facilmente. Não parasse
ele repetidas vezes, impossível seria a minha tarefa. Quando
vislumbrava seu vulto, depois de tê-lo perdido por momentos,
encontrava-o agachado, enchendo os bolsos internos com coisas
impossíveis de serem distinguidas de longe.
Bem
monótono era segui-lo sempre pelos mesmos caminhos. Principalmente
por não o ver entrar em algum edifício, conversar com amigos ou
mulheres. Nem ao menos cumprimentava um conhecido.
Na
volta, de madrugada, Cris ia retirando de dentro do paletó os
objetos que colhera na ida e, um a um, jogava-os fora. Tinha a
impressão de que os examinava com ternura antes de livrar-se deles.
*
* *
Alguns
meses decorridos, os seus passeios obedeciam ainda a uma regularidade
constante. Sim, invariável era o trajeto seguido por Cris, não
obstante a aparente falta de rumo com que caminhava. Partindo da sua
casa, descia dez quarteirões em frente, virando na segunda avenida
do percurso. Dali andava pequeno trecho, enveredando imediatamente
por uma rua tortuosa e estreita. Quinze minutos depois atingia a zona
suburbana da cidade, onde os prédios eram raros e sujos. Somente
estacava ao deparar uma casa de armarinho, em cuja vitrina, forrada
de papel crepom, se encontrava permanentemente exposta uma pobre
boneca. Tinha os olhos azuis, um sorriso de massa.
Uma
noite — já me acostumara ao negro da noite — constatei,
ligeiramente surpreendido, que os seus passos não nos conduziriam
pelo itinerário da véspera. (Havia algo que ainda não amadurecera
o suficiente para sofrer tão súbita ruptura.)
Nesse
dia, o andar firme, seguiu em linha reta, evitando as ruas
transversais, pelas quais passava sem se deter. Atravessou o centro
urbano, deixou para trás a avenida em que se localizava o comércio
atacadista. Apenas se demorou uma vez — assim mesmo momentaneamente
— defronte a um cinema, no qual meninos de outros tempos assistiam
a filmes em série. Fez menção de comprar entrada, o que deveras me
alarmou. Contudo, sua indecisão foi breve e prosseguiu a caminhada.
Enfiou-se pela rua do meretrício, parando a espaços, diante dos
portões, espiando pelas janelas, quase todas muito próximas do
solo.
Em
frente a uma casa baixa, a única da cidade que aparecia iluminada,
estacionou hesitante. Tive a intuição de que aquele seria o
instante preciso, pois se Cris retrocedesse, não lograria outra
oportunidade. Corri para seu lado e, sacando do punhal, mergulhei-o
nas suas costas. Sem um gemido e o mais leve estertor, caiu no chão.
Do seu corpo magro saiu a lua. Uma meretriz que passava, talvez
movida por impensado gesto, agarrou-a nas mãos, enquanto uma garoa
de prata cobria as roupas do morto. A mulher, vendo o que sustinha
entre os dedos, se desfez num pranto convulsivo. Abandonando a lua,
que foi varando o espaço, ela escondeu a face no meu ombro.
Afastei-a de mim, e, abaixando-me, contemplei o rosto de Cris. Um
rosto infantil, os olhos azuis. O sorriso de massa.
Murilo
Rubião, in Obra completa
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