sábado, 6 de janeiro de 2018

Variações Ajzenberg

Variações Goldberg (1ª edição)

Durante alguns meses, participei de um círculo de leitura de Fernando Pessoa. Éramos um grupo pequeno – uma bailarina, um físico, um filósofo, um psicanalista e eu. Havia um sexto participante: um médico, que chamarei apenas de doutor T.
Comovia-me o esforço do doutor T. para encontrar verdades e respostas nos poemas de Pessoa. Para seu horror, as lições que arrancava a fórceps dos versos eram logo destruídas pelos próprios versos. T. não suportava o mal-estar e as variações que a leitura de Fernando Pessoa nos impõe.
Um dia, abatido, anunciou sua saída do grupo. “Esse homem não sabe o que diz”, justificou. Seus olhos estavam embotados de decepção. Estampavam um segundo sentimento, mais doloroso: a vergonha, como se o tivéssemos flagrado em um devaneio infantil. Ela tornava seu olhar não só murcho, mas áspero.
Hoje encontro uma expressão melhor para descrevê-lo: os olhos do doutor T estavam secos. Soube, tempos depois, que passou a desaconselhar a seus pacientes, como potencialmente perigosas, a leitura de ficções. A uma pessoa do grupo que o encontrou, por acaso, em um shopping, ele disse: “Agora, sim, longe dos escritores, eu sei onde piso”.
Devo a expressão a Bernardo Ajzenberg e a seu mais recente romance, Olhos secos (Rocco). Uma incômoda narrativa sobre o duplo poder da imaginação. Sim: também a imaginação está regida por oscilações e variações. Grandes escritores, como Pessoa, a usam para ampliar o horizonte humano. Muitos de nós, porém, dela fazemos um uso bem menos sábio: usamos a fantasia para nos cegar.
Não sei se Leon Zaguer, o protagonista de Ajzenberg, chega a ser um fracassado, como ele imagina. A vida do Leon adulto, atolado na mornidão do casamento e em uma profissão que despreza, tem, em princípio, a aparência de um desmentido (de uma aniquilação) das aventuras do jovem Leon pela Europa e por Israel. Delas só restam anotações em um diário.
O romance de Bernardo Ajzenberg contrapõe esses dois Leons. Também eu, enquanto leio Olhos secos, me desdobro. Continuo a ser quem inevitavelmente sou; mas me torno também, um pouco, Leon Zaguer. Com a força de um explosivo, a literatura escava veios imaginários no peito do leitor. Não para consolá-lo, pois não pretende solucionar nada. Mas para energizá-lo. Os grandes livros expõem as variações (sismos, cisões, desencontros) que, alternando em nosso interior, fazem de nós homens, e não feras.
Na música, o termo “variações” fala da apresentação de uma mesma melodia ou harmonia com modificações estruturais que as tornam aparentemente novas. Nas variações musicais, o Mesmo “é” o Outro, o que ilustra nossa condição bipartida, na qual, quanto mais desdobramos a fantasia (em vez de nela nos mirar placidamente, como crentes), mais nos aproximamos de nós mesmos.
Penso na mais célebre das variações musicais, as Variações Goldberg, magnífica obra para cravo composta por Bach. Um vizinho que estuda música me conta que ela é o resultado de uma encomenda do conde Kayserling, destinada ao cravista Johann Goldberg. O conde sofria de uma insônia grave; Bach compôs suas variações na esperança de adormecê-lo. Até hoje, as Variações Goldberg – consagradas nas interpretações do pianista canadense Glenn Gould – nos sacodem e despertam. O paradoxo é suficiente para ilustrar a autonomia da arte.
Também Ajzenberg é autor de um belo romance que trata da instabilidade do coração, Variações Goldman, de 1998 – a história de um homem atordoado pelas repetições do amor. Nas variações, a linha (o corpo) se mantém. Mudam as energias, o tônus, o espírito que nela (nele) circulam. Em Olhos secos, um mesmo personagem, Leon Zaguer, se divide não para fugir, mas, ao contrário, para se encontrar.
Leon Zaguer é o Goldberg de Ajzenberg. Em seu interior, os humores se alternam e a existência se move. As duas vidas de Zaguer não se chocam, embora ele pense que sim. O homem maduro, como um vampiro que suga o sangue do próprio pescoço, se alimenta do jovem; mas é a fantasia da maturidade que mantém o jovem de pé.
O leitor de ficção está absolutamente desinteressado das lições de vida que o dogmático doutor T tanto preza. A literatura não ensina nada. Ao contrário, nos defronta – como Leon Zaguer – com duas metades que jamais se encaixam. Esse homem “ficcional” – Zaguer, que muitos talvez tomem como uma falsificação – é muito mais verdadeiro do que o homem que se pensa verdadeiro.
Seu casamento é puro tédio. A um amigo, ele confessa que uma de suas raras diversões é “encaixar os ovos no compartimento da geladeira quando volto do supermercado”. Talvez esses sejam alguns dos poucos momentos em que a ilusão do encaixe e da estabilidade se concretiza.
Jovem, viajando por Atenas, Zaguer pensa em uma ideia de Bertold Brecht segundo a qual não é triste o país que não tem heróis, mas aquele que precisa de heróis. Maduro, deprimido com a rotina no cartório, sofre do mal prenunciado por Brecht: agarra-se ao jovem que foi e supõe que só na juventude chegamos à felicidade. Fica-lhe uma frase do pai: “Talvez o monstro não seja tão monstruoso assim, talvez você, sem saber, seja até mais monstruoso do que ele”.
Quando admiramos alguém, uma imagem atordoante e luminosa sempre nos cega, lhe adverte o amigo Moti Ajzen, um dentista infeliz que carrega em seu sobrenome metade do sobrenome de Ajzenberg. A idealização nos deixa com os olhos secos, “petrificados, sem luz, nem água”. Retidos na dura borra dos ideais, afundamos na tristeza. Bem melhor (e mais bela) é a incoerência do real.
Lembro que, durante nossas reuniões para a leitura de Pessoa, o doutor T. se dizia deprimido porque seus ideais de juventude se esfarelaram e a vida o traíra. Sem fantasias que o protegessem (como alguém nu em um baile de Carnaval), o mundo lhe parecia fétido como um esgoto. Daí sua opção pela medicina, a arte da higiene e da cura.
Não podia entender o doutor T. que, ali onde a fantasia se desmancha, a vida começa. Desmascarada a solução imaginária, tudo o que temos, ainda, é a imaginação. Só que agora, em fez de nos afastar do mundo, ela nos joga em seu coração.
José Castello, in Sábados inquietos

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