Nosso
riachinho vai, vai. Dou a vocês notícias dele, nesses tempos de
amores. De lá, o mundo é lúcil, transparente. É julho. Neblina
fria, por tudo, se você se levantar às seis da manhã: é toda na
terra. Antes do sol, cedinho, ela está no chão, por toda a parte.
Menos no leito do Sirimim, no caminhar da correnteza. Com o sol, ela
já dá de se esfiapando e subindo — os penachos de neblina. Já
está nos cajueiros e nos bambus, por cima. A beleza da manhã é
esta: você não vê o sol, mas a claridade.
Depois,
aquelas névoas vão sempre caminhando, encostadas nas pedreiras, nas
grotas. Cheiro de de-manhã é tão gostoso! Amanhece tudo molhado,
muito orvalho. Todos os pezinhos de mamão, você olhava, ficavam
cintilando. Talvez porque as folhinhas são recortadas, nos biquinhos
delas param as gotinhas, penduradas.
De
madrugadinha, o sol ainda não estava forte. Do Sirimim, voaram dois
patos-do-mato, quando eu ia pela estrada. Dois patos-bravos: eles
levantaram voo, dos canais da horta, onde tem os muçuns. Estavam
atrás do muçum, escorando o muçum? Porque é a hora do muçum
tomar sol. Ele sai, das fundas locas, que escava, deixa um
trilhozinho. Fica na água ralinha da beira. Ele vem à tona, para
tomar sol. Seus sulcos, na lama, dão aquele desenho, sob um, dois
dedos de água.
E
o barulho do Sirimim ainda se ouve forte, desde a pontezinha,
cicioso. Este ano, choveu passado da conta, a várzea ficou debaixo
d’água, o verão inteiro. Foi uma cheia! Não se podia ir à
horta, porque ela se encharcou demais. Morreram dois ou três
mamoeiros. Morreram os pés de pimenta. As laranjeiras estão lá,
padecendo, mas dando fruta. Viveram muitos olhos-d’água. Alguns,
antigos, secos, voltaram a jorrar. Mas, diz o Pedro que os outros são
miriquilhos novos, que ele nem conhecia. Brotou, um, mesmo no
terreiro do Joaquim. O Pedro diz: — “Se eu não tomo cautela,
e não soco o chão de terra, dá água até dentro de casa. Daqui a
pouco, os pés das camas estão amolecendo...” Marejou água,
de fato, em todas as moradas. Mas, por contra, saiu também um
formigueiro de de-dentro do chão da casa do Antônio.
Vamos
vir ao começo: àquela grande pedra, manânime, ninfal, donde o
Sirimim primeiro nasce. As abelhas prosseguem lá, escutei o
barulhinho delas, zumbindo, e vêm se apinhar nas flores vermelhas da
cana-de-macaco. Parece que quando dão enxames, estes não viajam,
mas vão-se arrastando ali por dentro, na mesma pedra, em rachas e
lugares. Está-se na altura de tirar mel, de novo, diz o Pedro. Mas o
Maninho não tem tempo, anda atrapalhado, com o casamento da irmã
dele. Maninho é filho do Dudu. E os chuchuzeiros prosperam. Aqueles
chuchus, que o Pedro plantou para mim, perto da pedra, das bananeiras
e do mato. Teve de plantar dois, porque, se não, não nasce, não
vinga a muda, se uma só: é preciso sempre o par.
O
Pedro é que raiava feliz, porque estão fazendo para ele outra
casinha, e de tijolo, telha francesa, emboçada por fora e por
dentro. Também, a dele já está tão impossível —
apodrecidamente, velha de se desmantelar. Assim mesmo, ele e Eva, sua
filha mocinha, se acomodavam, com Deus, sozinhos ali dentro, quem
sabe fazendo esperanças de coisa melhor. O Pedro, ainda que
aleijadinho, trabalha o que pode, não pouco, quase o tanto que o
velho Joaquim, seu irmão, vizinho; seu taciturno padrinho. O Pedro,
a gente o avista, desde o princípio da manhã, atolado entre os
verdes, do milho, do arroz. Assim meio entortado, meio agachado,
apoiado à enxada ou à foice; ou só um seu mover-se, nesga de
roupa, de camisa. O calor estando pesando forte, mais para a tarde,
ele permanece então, um bocado, a dentro de portas, rezando sentado
no jirau, feita a sua parte. Se a gente perguntar, ele declara: —
“Agora eu estou esperando a chuva...” Ele nunca pensou em
morar em “casa de luxo”, com janelas de venezianas. Diz: —
“Chegou o dia das pessoas terem inveja do Pedro...”
A
casinha, que se faz, será mesmo ali, pegada à velha, no mesmo
recanto noruego — de pedra, da grota, das bananeiras, do mato. O
Pedro, porém, gostaria de arredá-la um pouco da outra, cisma, tem
dessas superstições: teme o novo superposto ao velho ou a ele
contíguo, não dá sorte. E, com lábia e conversas, consegue mudar
um tanto o lugar onde a casa vai ser, afasta-a: — “Chega um
pouco mais para lá, compadre... Depois, eu desaterro aqui...”
Os homens vão cedendo.
A
biquinha se põe grossa, a primeira, dali donde o Pedro pegou o tatu.
A água está tombando muita da pedra — porquanto as ditas chuvas —
chuva que foi muita. Os mais pocinhos e biquinhas, sucessivos, estão
e são os mesmos, só os bichinhos variam, por ali. O Pedro agora tem
outra cachorra, a filha da Bolinha, quase da mesma bondade. Sem um
cachorrinho, ao menos, a gente pobre não se pode.
Também
a mangueira grande persiste: a maior de todas, caindo os galhos para
todos os lados, e da qual desviaram o Siriminzinho, à força, para
ele não atrapalhar as raízes da árvore. Debaixo dela, o Pedro
depositou um urinol velho, plantado de avencas; é muda de avenca,
para florescer, no lugar sombroso. Mas, a bacia de folha, que se vê,
não está jogada fora. Isto é, alguém, há muito, muito tempo,
jogou-a fora; e, o Pedro, que carece de utensílios, recolheu-a do
monturo, pregou-lhe um fundo outro, de madeira, em pontos, se
perfura, estragada, então o Pedro tem de aplicar-lhe remendos, de
lata, aqui e ali. E havia, outrossim, ao pé da mangueira, um
passarinho: o passarinho verdinho, se balançando no arroz. Nunca vi
passarinho tão de costas, na beira d’água. Ele já teria bebido?
O
arrozal do Pedro, aliás, está com o “arroz de passarinho”: o
segundo arroz, do rebroto das touceiras após a colheita, mais
baixinho, mais ralo, e que não se colhe mais, e fica para eles; já
todo chocho, porque os passarinhos o comem ainda verde. São
passarinhos de toda qualidade, que, decerto, vêm de longe,
nuvenzinhas deles, quanto e quantos. As espécies não se misturam?
Enquanto uns catam e comem, outros bandos esperam sua vez, férvidos
nas árvores e nos arbustos. O arrozal do Pedro, de tudo em tudo,
ainda se faz muito alagado.
A
pinguela — bem. Com água lhe passando pelos lados, quase por cima,
enfeitada e cheia de florzinhas amarelas, de plantas aquáticas, de
suas duas bandas e no meio dos paus. O primeiro afluente do Sirimim —
o vindo daquela embaúba nova, no caminho da casa do Joaquim — e
que todos os anos seca, como que este ano não secou; e canta, sim,
sim.
A
várzea grande deu muito peixe: os camboatás, com dois bigodinhos de
cada lado: cascudos e traíras, poucas: e, principalmente, os
barrigudinhos. E, depois que a Irene foi-se embora, deu uma fartura
de rãs. Irene caçava-as e pegava-as, para comer. O Pedro e a Eva
sempre escutam as rãs. As com espécie de assovio, de taquara, de
grilo grande, ou a meio desafinada, rouca: — ... corrém,
corrém, corréim! A mais, os sapos — de: tiplão! tiplão!
pão!... e de: tum, tum, tum... — sapos de vários
feitios e diversas sonoras batidas.
O
arrozal do Joaquim, também, revive-se assim cheio de pássaros, em
seu arroz-de-ninguém. De revoada em revoada, deles tem centenas. O
Joaquim nem olha para eles.
O
chupão é que ficou mais atoladiço, mais perigoso, se bem que deve
de medir só metro-e-meio por dois metros, talvez nem tanto. Mas,
estão lá, marcando-o, os bambus fincados em volta.
A
biquinha do Joaquim ainda faz muito barulho, engrossada, no meio da
palhada de milho. É um barulho de nino de água, rolando todo o
tempo. Mas a Irene não está mais aqui, lavando roupa. Irene foi-se
embora, para o Rio de Janeiro, veio se empregar lá, de todo serviço,
como ela mesma diz: pau-para-toda-obra. Foi porque o namoro dela com
o Maninho não deu certo. Ela namorava o Maninho, e o Maninho tirava
o corpo fora. Foi no baile do Cristóvão. O Maninho dançou uma vez
com ela, só, depois dançou com as outras todas. Ele acha a Irene
muito boa moça, mas não queria pensar por ora em casamento,
enquanto não acabar de casar todas as irmãs. Depois é que ficou
sabendo que ela é muito geniosa. Ela saiu ao pai, o Joaquim. Mas,
agora, na biquinha, quem lava a roupa é a mãe da Irene, mulher do
Joaquim, por nome Maria: a Maria do Aarão.
Na
horta, o Joaquim fez umas pontezinhas de bambu, nos canais. Daquele
bambu bonito, imperial, amarelo-e-verde. Uns quatro, em cada ponte.
Mas, calculadas pelo peso dele, pouco, de um tão velhinho; e, se
passar por ali pessoa gorda, ou mais pesada, e não tomar cuidado,
distribuindo o peso, pisando muito espalhado, molha os pés, entre os
bambus, o bambu verga.
A
horta está com muitas plantinhas d’água, gentis. As
santas-luzias, que se alastram, com florinhas amarelinhas, elas dão
remédio para a vista. O caldo-santo, de folha verde-muito-escuro,
bonitinho, também se espalhando. Outras, outras. São cheiros do
mato. Muitas variadas praguinhas, na água, puro em verdes. O Sirimim
ainda anda cheio demais de moles folhagens, que quase o submergem,
por todos os trechos. As mais, nos canais, são sorte de mínimas
algas. Por ali perpassa a aranha aquática, pernuda. E os muçuns. O
muçum bóia, mais ou menos. É um peixe enguia — roliço, preto,
liso e gosmento; tem os de mais de dois palmos. O Joaquim mata-os, de
enxada, no limpar os regos. A gente põe na brasa, para se tirar a
casca. Quando ficam vermelhinhos, arranca-se a pele, e então
esvaziam-se, por um corte na cauda. E se frita. Mas o Joaquim não
gosta, porque gasta muita banha.
Os
bambus, perto da ponte, cresceram muito, o bambu está sempre
renovando, aumentando; só que os outros bambuais são tão grandes,
que a gente nem nota seu crescer. Com a chuva, desmanchou-se o ninho
velho do sabiá, mas ele já tinha tirado os filhotes. O bambu, lá,
eram só uns tufos, porque, quando se fez a estradinha para a casa,
tiveram de cortar. Agora, já estão enchendo. O bambu parece que
entendeu: porque vai brotando para baixo. Ainda não é tempo do
sabiá voltar.
Pela
estradinha, aí, passo adiante, você acha a casinha nossa — que já
ficou muito mais pronta: três amores! — lindazinha. A gente vai
almoçar angu, feijão, torresmos, suã de porco; e doce de
limãozinho verde em calda.
E
agora tem é uma cabritinha pastando, na várzea pequena que era a da
bezerrinha de pé quebrado. Cabritinha do Antônio, o colono novo,
que pediu para se deixar. A bezerrinha ficou sarada, só que para
sempre manca, com o pezinho virado para trás. Mas já acompanha as
outras, no pasto. A cabritinha fica amarrada em uma corda, bebendo
água do Sirimim e comendo o capim da beira dele. É branquinha, só
com duas bolinhas pretas nas costas, uma de cada lado.
A
foz, quando acabam as enchentes, resta mais arrumadinha toda, com a
areia limpa, renovada.
Por
lá, na enseadinha e no rio, debaixo dos bambus, nadava uma marreca,
selvagem, com os seus marrequinhos. Outro dia, um deles veio subindo
o Sirimim, se aventurou. Foi de manhã, e ele era pequenino, cor de
ouro: o marreco, antes de ser branco — quando pequenininho — é
dourado. Douradinho, já voava.
Parece
que queria pegar uma libélula. O patinho veio nadando, subindo o
Sirimim, por todas as retas e curvas, contra a correnteza, tão
pequenino e douradinho, entrequequanto. Veio parar antes da ponte, no
bambuzinho adonde o ninho do sabiá. Ali, estreita. Ali, ele gostou,
nadava em volta de si, e parafusava com a cabeça, dentro d’água.
No que estava, porém, entre capins, se assustou e voou. Se assustou,
sem duas vezes, com algo no mato. Voou para baixo e por cima dos
bambus. Voou para o rio, certeiro, voltou voando para perto da pata,
sua mãe, na foz: e a marreca, com seus sete marrequinhos,
mergulharam então para fugir, para o rio, além.
Enquanto
o Sirimim por ali se vai sempre a sair — no oceano sonho. Nunca
mais, mesmo que se acabe o mundo, deixará de haver, para vocês e em
mim, o riachinho Sirimim.
Guimarães
Rosa, in Ave, palavra
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