segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Recados do Sirimim

Nosso riachinho vai, vai. Dou a vocês notícias dele, nesses tempos de amores. De lá, o mundo é lúcil, transparente. É julho. Neblina fria, por tudo, se você se levantar às seis da manhã: é toda na terra. Antes do sol, cedinho, ela está no chão, por toda a parte. Menos no leito do Sirimim, no caminhar da correnteza. Com o sol, ela já dá de se esfiapando e subindo — os penachos de neblina. Já está nos cajueiros e nos bambus, por cima. A beleza da manhã é esta: você não vê o sol, mas a claridade.
Depois, aquelas névoas vão sempre caminhando, encostadas nas pedreiras, nas grotas. Cheiro de de-manhã é tão gostoso! Amanhece tudo molhado, muito orvalho. Todos os pezinhos de mamão, você olhava, ficavam cintilando. Talvez porque as folhinhas são recortadas, nos biquinhos delas param as gotinhas, penduradas.
De madrugadinha, o sol ainda não estava forte. Do Sirimim, voaram dois patos-do-mato, quando eu ia pela estrada. Dois patos-bravos: eles levantaram voo, dos canais da horta, onde tem os muçuns. Estavam atrás do muçum, escorando o muçum? Porque é a hora do muçum tomar sol. Ele sai, das fundas locas, que escava, deixa um trilhozinho. Fica na água ralinha da beira. Ele vem à tona, para tomar sol. Seus sulcos, na lama, dão aquele desenho, sob um, dois dedos de água.
E o barulho do Sirimim ainda se ouve forte, desde a pontezinha, cicioso. Este ano, choveu passado da conta, a várzea ficou debaixo d’água, o verão inteiro. Foi uma cheia! Não se podia ir à horta, porque ela se encharcou demais. Morreram dois ou três mamoeiros. Morreram os pés de pimenta. As laranjeiras estão lá, padecendo, mas dando fruta. Viveram muitos olhos-d’água. Alguns, antigos, secos, voltaram a jorrar. Mas, diz o Pedro que os outros são miriquilhos novos, que ele nem conhecia. Brotou, um, mesmo no terreiro do Joaquim. O Pedro diz: — “Se eu não tomo cautela, e não soco o chão de terra, dá água até dentro de casa. Daqui a pouco, os pés das camas estão amolecendo...” Marejou água, de fato, em todas as moradas. Mas, por contra, saiu também um formigueiro de de-dentro do chão da casa do Antônio.
Vamos vir ao começo: àquela grande pedra, manânime, ninfal, donde o Sirimim primeiro nasce. As abelhas prosseguem lá, escutei o barulhinho delas, zumbindo, e vêm se apinhar nas flores vermelhas da cana-de-macaco. Parece que quando dão enxames, estes não viajam, mas vão-se arrastando ali por dentro, na mesma pedra, em rachas e lugares. Está-se na altura de tirar mel, de novo, diz o Pedro. Mas o Maninho não tem tempo, anda atrapalhado, com o casamento da irmã dele. Maninho é filho do Dudu. E os chuchuzeiros prosperam. Aqueles chuchus, que o Pedro plantou para mim, perto da pedra, das bananeiras e do mato. Teve de plantar dois, porque, se não, não nasce, não vinga a muda, se uma só: é preciso sempre o par.
O Pedro é que raiava feliz, porque estão fazendo para ele outra casinha, e de tijolo, telha francesa, emboçada por fora e por dentro. Também, a dele já está tão impossível — apodrecidamente, velha de se desmantelar. Assim mesmo, ele e Eva, sua filha mocinha, se acomodavam, com Deus, sozinhos ali dentro, quem sabe fazendo esperanças de coisa melhor. O Pedro, ainda que aleijadinho, trabalha o que pode, não pouco, quase o tanto que o velho Joaquim, seu irmão, vizinho; seu taciturno padrinho. O Pedro, a gente o avista, desde o princípio da manhã, atolado entre os verdes, do milho, do arroz. Assim meio entortado, meio agachado, apoiado à enxada ou à foice; ou só um seu mover-se, nesga de roupa, de camisa. O calor estando pesando forte, mais para a tarde, ele permanece então, um bocado, a dentro de portas, rezando sentado no jirau, feita a sua parte. Se a gente perguntar, ele declara: — “Agora eu estou esperando a chuva...” Ele nunca pensou em morar em “casa de luxo”, com janelas de venezianas. Diz: — “Chegou o dia das pessoas terem inveja do Pedro...”
A casinha, que se faz, será mesmo ali, pegada à velha, no mesmo recanto noruego — de pedra, da grota, das bananeiras, do mato. O Pedro, porém, gostaria de arredá-la um pouco da outra, cisma, tem dessas superstições: teme o novo superposto ao velho ou a ele contíguo, não dá sorte. E, com lábia e conversas, consegue mudar um tanto o lugar onde a casa vai ser, afasta-a: — “Chega um pouco mais para lá, compadre... Depois, eu desaterro aqui...” Os homens vão cedendo.
A biquinha se põe grossa, a primeira, dali donde o Pedro pegou o tatu. A água está tombando muita da pedra — porquanto as ditas chuvas — chuva que foi muita. Os mais pocinhos e biquinhas, sucessivos, estão e são os mesmos, só os bichinhos variam, por ali. O Pedro agora tem outra cachorra, a filha da Bolinha, quase da mesma bondade. Sem um cachorrinho, ao menos, a gente pobre não se pode.
Também a mangueira grande persiste: a maior de todas, caindo os galhos para todos os lados, e da qual desviaram o Siriminzinho, à força, para ele não atrapalhar as raízes da árvore. Debaixo dela, o Pedro depositou um urinol velho, plantado de avencas; é muda de avenca, para florescer, no lugar sombroso. Mas, a bacia de folha, que se vê, não está jogada fora. Isto é, alguém, há muito, muito tempo, jogou-a fora; e, o Pedro, que carece de utensílios, recolheu-a do monturo, pregou-lhe um fundo outro, de madeira, em pontos, se perfura, estragada, então o Pedro tem de aplicar-lhe remendos, de lata, aqui e ali. E havia, outrossim, ao pé da mangueira, um passarinho: o passarinho verdinho, se balançando no arroz. Nunca vi passarinho tão de costas, na beira d’água. Ele já teria bebido?
O arrozal do Pedro, aliás, está com o “arroz de passarinho”: o segundo arroz, do rebroto das touceiras após a colheita, mais baixinho, mais ralo, e que não se colhe mais, e fica para eles; já todo chocho, porque os passarinhos o comem ainda verde. São passarinhos de toda qualidade, que, decerto, vêm de longe, nuvenzinhas deles, quanto e quantos. As espécies não se misturam? Enquanto uns catam e comem, outros bandos esperam sua vez, férvidos nas árvores e nos arbustos. O arrozal do Pedro, de tudo em tudo, ainda se faz muito alagado.
A pinguela — bem. Com água lhe passando pelos lados, quase por cima, enfeitada e cheia de florzinhas amarelas, de plantas aquáticas, de suas duas bandas e no meio dos paus. O primeiro afluente do Sirimim — o vindo daquela embaúba nova, no caminho da casa do Joaquim — e que todos os anos seca, como que este ano não secou; e canta, sim, sim.
A várzea grande deu muito peixe: os camboatás, com dois bigodinhos de cada lado: cascudos e traíras, poucas: e, principalmente, os barrigudinhos. E, depois que a Irene foi-se embora, deu uma fartura de rãs. Irene caçava-as e pegava-as, para comer. O Pedro e a Eva sempre escutam as rãs. As com espécie de assovio, de taquara, de grilo grande, ou a meio desafinada, rouca: — ... corrém, corrém, corréim! A mais, os sapos — de: tiplão! tiplão! pão!... e de: tum, tum, tum... — sapos de vários feitios e diversas sonoras batidas.
O arrozal do Joaquim, também, revive-se assim cheio de pássaros, em seu arroz-de-ninguém. De revoada em revoada, deles tem centenas. O Joaquim nem olha para eles.
O chupão é que ficou mais atoladiço, mais perigoso, se bem que deve de medir só metro-e-meio por dois metros, talvez nem tanto. Mas, estão lá, marcando-o, os bambus fincados em volta.
A biquinha do Joaquim ainda faz muito barulho, engrossada, no meio da palhada de milho. É um barulho de nino de água, rolando todo o tempo. Mas a Irene não está mais aqui, lavando roupa. Irene foi-se embora, para o Rio de Janeiro, veio se empregar lá, de todo serviço, como ela mesma diz: pau-para-toda-obra. Foi porque o namoro dela com o Maninho não deu certo. Ela namorava o Maninho, e o Maninho tirava o corpo fora. Foi no baile do Cristóvão. O Maninho dançou uma vez com ela, só, depois dançou com as outras todas. Ele acha a Irene muito boa moça, mas não queria pensar por ora em casamento, enquanto não acabar de casar todas as irmãs. Depois é que ficou sabendo que ela é muito geniosa. Ela saiu ao pai, o Joaquim. Mas, agora, na biquinha, quem lava a roupa é a mãe da Irene, mulher do Joaquim, por nome Maria: a Maria do Aarão.
Na horta, o Joaquim fez umas pontezinhas de bambu, nos canais. Daquele bambu bonito, imperial, amarelo-e-verde. Uns quatro, em cada ponte. Mas, calculadas pelo peso dele, pouco, de um tão velhinho; e, se passar por ali pessoa gorda, ou mais pesada, e não tomar cuidado, distribuindo o peso, pisando muito espalhado, molha os pés, entre os bambus, o bambu verga.
A horta está com muitas plantinhas d’água, gentis. As santas-luzias, que se alastram, com florinhas amarelinhas, elas dão remédio para a vista. O caldo-santo, de folha verde-muito-escuro, bonitinho, também se espalhando. Outras, outras. São cheiros do mato. Muitas variadas praguinhas, na água, puro em verdes. O Sirimim ainda anda cheio demais de moles folhagens, que quase o submergem, por todos os trechos. As mais, nos canais, são sorte de mínimas algas. Por ali perpassa a aranha aquática, pernuda. E os muçuns. O muçum bóia, mais ou menos. É um peixe enguia — roliço, preto, liso e gosmento; tem os de mais de dois palmos. O Joaquim mata-os, de enxada, no limpar os regos. A gente põe na brasa, para se tirar a casca. Quando ficam vermelhinhos, arranca-se a pele, e então esvaziam-se, por um corte na cauda. E se frita. Mas o Joaquim não gosta, porque gasta muita banha.
Os bambus, perto da ponte, cresceram muito, o bambu está sempre renovando, aumentando; só que os outros bambuais são tão grandes, que a gente nem nota seu crescer. Com a chuva, desmanchou-se o ninho velho do sabiá, mas ele já tinha tirado os filhotes. O bambu, lá, eram só uns tufos, porque, quando se fez a estradinha para a casa, tiveram de cortar. Agora, já estão enchendo. O bambu parece que entendeu: porque vai brotando para baixo. Ainda não é tempo do sabiá voltar.
Pela estradinha, aí, passo adiante, você acha a casinha nossa — que já ficou muito mais pronta: três amores! — lindazinha. A gente vai almoçar angu, feijão, torresmos, suã de porco; e doce de limãozinho verde em calda.
E agora tem é uma cabritinha pastando, na várzea pequena que era a da bezerrinha de pé quebrado. Cabritinha do Antônio, o colono novo, que pediu para se deixar. A bezerrinha ficou sarada, só que para sempre manca, com o pezinho virado para trás. Mas já acompanha as outras, no pasto. A cabritinha fica amarrada em uma corda, bebendo água do Sirimim e comendo o capim da beira dele. É branquinha, só com duas bolinhas pretas nas costas, uma de cada lado.
A foz, quando acabam as enchentes, resta mais arrumadinha toda, com a areia limpa, renovada.
Por lá, na enseadinha e no rio, debaixo dos bambus, nadava uma marreca, selvagem, com os seus marrequinhos. Outro dia, um deles veio subindo o Sirimim, se aventurou. Foi de manhã, e ele era pequenino, cor de ouro: o marreco, antes de ser branco — quando pequenininho — é dourado. Douradinho, já voava.
Parece que queria pegar uma libélula. O patinho veio nadando, subindo o Sirimim, por todas as retas e curvas, contra a correnteza, tão pequenino e douradinho, entrequequanto. Veio parar antes da ponte, no bambuzinho adonde o ninho do sabiá. Ali, estreita. Ali, ele gostou, nadava em volta de si, e parafusava com a cabeça, dentro d’água. No que estava, porém, entre capins, se assustou e voou. Se assustou, sem duas vezes, com algo no mato. Voou para baixo e por cima dos bambus. Voou para o rio, certeiro, voltou voando para perto da pata, sua mãe, na foz: e a marreca, com seus sete marrequinhos, mergulharam então para fugir, para o rio, além.
Enquanto o Sirimim por ali se vai sempre a sair — no oceano sonho. Nunca mais, mesmo que se acabe o mundo, deixará de haver, para vocês e em mim, o riachinho Sirimim.
Guimarães Rosa, in Ave, palavra

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