— Esse
quadro está torto desde o começo do mundo e ninguém se lembra de
consertar sua posição — observou o sr. Borges, levantando a
cabeça, entre o primeiro e o segundo goles do café da manhã.
— Há
pessoas realmente exageradas — ponderou a sra. Borges, enquanto
passava geleia no brioche. — Esse quadro está assim apenas há uma
semana.
— Uma
semana parece tempo suficiente para alguém corrigir a posição de
um quadro na parede — retrucou o sr. Borges, sorvendo mais um gole
e desdobrando o jornal.
—
Admitindo-se que assim seja, embora a
colocação de um objeto de arte exija muitas experiências e tempo
indeterminado de observação e crítica, até que seja atingido o
resultado ideal, presume-se que a pessoa não satisfeita com a
posição de um quadro…
A
sra. Borges fez uma pausa para levar aos lábios a fatia de brioche,
mastigá-la e engoli-la, concluindo placidamente:
— …
Tome a iniciativa de modificá-la para
melhor.
Ao
que o sr. Borges emitiu este juízo:
— A
presunção envolve problema de competência — e olhou para um
ponto indefinido no espaço. — Seria conveniente indagar, de
início, a quem, no âmbito de uma residência, compete cuidar da boa
arrumação das coisas.
A
sra. Borges considerou com minuciosa atenção a colherzinha de prata
colocada entre os seus dedos polegar e médio, como se ambicionasse
descobrir nela uma propriedade oculta, e, ao cabo de minuto e meio,
manifestou-se:
— Não
existe código especificando os diferentes casos e situações em que
determinada pessoa deva fazer isto ou aquilo. Além do mais, os
conceitos estabelecidos lucrariam em ser revistos à luz da razão.
A
página política passou a interessar tão acentuadamente o sr.
Borges que ele levou tempo para dizer:
— De
qualquer maneira, um quadro torto na parede é um quadro torto na
parede.
Dos
abismos da sua prospecção, a sra. Borges emergiu trazendo à tona
uma restritiva:
— Um
quadro torto na parede nem sempre é um quadro realmente torto na
parede.
Como
o sr. Borges, engolfado na leitura, não obtemperasse, a sra. Borges
houve por bem desenvolver o seu ponto de vista:
— O
quadro torto na parede pode estar mais certo do que o quadro
convencionalmente certo na parede.
O
sr. Borges não deu sinal de aceitar a tese da sra. Borges nem de
repeli-la, e a explanação de sua esposa prosseguiu:
— Há
muitas maneiras de ver um quadro, como também há muitas maneiras de
colocá-lo, inclusive, e tem acontecido em museus, de cabeça para
baixo, com rendimento óptico.
O
sr. Borges virou a página, pigarreou e sentenciou:
— Nem
todas as pessoas gostam de plantar bananeira para contemplar
normalmente uma obra de arte.
O
café da manhã parecia ter duração imprevisível, tão vagarosos
eram os gestos e repetidas as pausas do sr. Borges e da sra. Borges.
Ouviu-se, afinal, a sra. Borges:
— A
colocação de um quadro não está subordinada às linhas
geométricas previstas pelo pintor, podendo variar com a
sensibilidade visual de quem o desfruta.
O
argumento não pareceu impressionar o sr. Borges, a julgar pelo que
saiu do seu interior:
— Nesse
caso, os bens desfrutados em comum se sujeitariam a variações
simultâneas e inconciliáveis, pela diversidade de gostos.
— Há
gostos mais apurados e outros menos apurados — foi o comentário da
sra. Borges.
—
Indiscutivelmente, o quadro está torto,
o que não é questão de gosto, mas questão de fato — e o sr.
Borges alçou ligeiramente a voz. — E não há computadores para
avaliação do gosto.
— Desde
que ele ficou assim, ganhou um novo sentido — disse a sra. Borges,
fixando o olhar, embevecidamente, no quadro em questão. — Foi a
arrumadeira que o colocou nessa posição, e o efeito benéfico logo
se fez sentir. Os volumes se equilibraram melhor, a composição
ganhou mais força, o quadro comunica mais.
— As
arrumadeiras tornaram-se peritas em belas-artes e deve ser-lhes
confiada a direção dos museus, ao que parece — foi a glosa do sr.
Borges. — Bom proveito a quem lhes seguir a orientação estética.
—
Euclides, você está me ofendendo —
irritou-se a sra. Borges.
— Você
já me ofendera antes — contra-atacou o sr. Borges.
— Esta
situação é intolerável, e eu exijo que você me peça desculpas —
soluçou a sra. Borges.
— Não
será melhor, Zuleica, entrarmos amanhã com a petição de desquite?
— detonou o sr. Borges.
Carlos
Drummond de Andrade, in 70 historinhas
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