sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

D. José não era

Vinde todos, ajuntai-vos, povos indignos de ser amados. (Sofonias, II, 1)
Uma explosão violenta sacudiu a cidade. Seguiram-se outras — menores e maiores. Desnorteado, o povo corria de um lado para o outro. Alguém que se conservara calmo no meio de tanta desordem gritou:
Não é o fim do mundo!
Eliminada a pior hipótese, surgiram novas conjeturas:
Para um bombardeio, faltavam os aviões.
Exercícios de artilharia?
Muito provável — apoiaram alguns, apressados em explicar o mistério.
E os canhões? — indagaram os mais lúcidos.
Houve quem falasse de uma invasão misteriosa, para em seguida concordarem todos: d. José estava matando a esposa a dinamite.
Os populares hesitaram em aproximar-se do prédio. Após curto silêncio, vários estampidos foram ouvidos. Um vagabundo, que ainda não se emocionara com os acontecimentos, comentou:
Será que a dinamite foi insuficiente e ele recorreu ao revólver?
Tornaram-se pálidos os rostos e, ansiosos, aguardaram o final do drama.

1. Tragédia?
Não. D. José estava experimentando fogos de artifício.
Ninguém quis confessar o desapontamento nem o gasto inútil de imaginação que, naquela meia hora de terror, fora exagerado nos espectadores.
Não a matou desta vez, mas ela não escapará de outra. Seu ódio por dona Sofia é incontrolável.

2. D. José odiava alguém?
Calúnia! Amava a mulher, os pássaros e as árvores. Ela, sim, detestava-o, irritava-se com os animais.
Infelicidade conjugal? Nunca! Os esposos combinavam admiravelmente bem.
Mas, entre os habitantes do lugar, não havia quem acreditasse nisso:
Ela finge amá-lo somente pelo seu dinheiro.
Estúpidos! D. José era o homem mais pobre da cidade e tinha uma úlcera no estômago.

3. À mais leve contestação, contrapunham-se novas acusações:
E os meninos, que choram noite adentro, famintos, espancados?
Falso! D. José perdera os filhos (cinco), vítimas da tuberculose. Agora recordava-se deles manipulando um aparelho que imitava o pranto infantil. E comovia muito mais que qualquer choro de criança.

4. D. José falava sempre de um livro que estava escrevendo. Um livro sobre duendes.
Era um fabulista?
Não. Os duendes habitavam a sua própria casa, ao alcance de seus olhos.
Seria a mulher um deles?

5. Um dia encontraram-no enforcado. Disseram imediatamente:
É só fingimento. O nó está pouco apertado.
Vejam que cara matreira! Está zombando de nós.
Infâmia! D. José suicidara-se mesmo.
Por quê?
Todo o mundo fingiu não saber.

6. Aos que lhe tomaram a defesa, anos após a sua morte, perguntavam:
Afinal, o que fazia esse d. José? Se não fumava, não bebia, não tinha amantes?
Amava o povo.
E o povo?
Observava-o com ferocidade.

7. Mais tarde erigiram-lhe uma estátua. Com um dístico: “D. José, nobre espanhol e benfeitor da cidade”.
Derradeira mentira. D. José era um pobre-diabo e não possuía nenhum título de nobreza. Chamava-se Danilo José Rodrigues.
Murilo Rubião, in Obra completa

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