São
Paulo parecia uma metrópole-fantasma. No fim da tarde do dia 2 de
janeiro telefonei para alguns amigos: queria saber o que eles tinham
feito no primeiro dia de 2010. Para minha surpresa, alguns
trabalharam. Um engenheiro me disse, sem ironia, que aproveitara o
silêncio para fazer o cálculo da estrutura de um galpão.
“O
maldito arquiteto devia ter projetado um simples galpão e desenhou
um disco voador”, ele disse. “Os arquitetos não aprendem mesmo.”
O
engenheiro passou o dia calculando estruturas metálicas, mas Eliete,
uma amiga cantora, passou a manhã deitada na rede, ouvindo
bossa-nova e Pixinguinha; durante a tarde leu Nietzsche e Heráclito,
e sonhou com um rio que não podia ser o Tietê nem o Pinheiros, que,
na cidade de São Paulo, são caricaturas feias de um rio.
“Quando
acordei, levei um susto”, ela disse. “Amanhecia. Não senti a
noite do primeiro dia do ano.”
“E
o rio?”, perguntei.
“Era
imenso como o mar, um rio sem margens, perigosíssimo. Acho que um
rio assim só existe nos sonhos.”
Nem
todos ouvem música, leem e sonham. Um amigo fotógrafo captou
imagens do primeiro dia do ano em São Paulo.
“Fiz
um ensaio fotográfico sobre o lixo”, ele disse. “E também sobre
os mendigos e catadores de papel. Passei o dia fotografando a cidade
de ressaca. Fiz mais de trezentas fotos no centro e em alguns
bairros. O título do ensaio é ‘Manhã depois da festa’.”
Já
o meu amigo Guerra — um sobrenome que contraria o caráter
pacifista da pessoa — passou o dia enviando mensagens contra os
fabricantes de todo tipo de material bélico.
Guerra
talvez seja o mais ingênuo dos pacifistas, e isso não é pouco. Não
sabe ou não quer saber que as indústrias de armamentos são as mais
poderosas do planeta. O lema de Guerra é: “Por um desarmamento
universal”.
Guerra
é um esperançoso. E eu admiro pessoas esperançosas.
Não
é o caso de Vanda, que é mais cética e pessimista do que um
eleitor latino-americano. Vanda passou o primeiro dia do ano vendo
filmes de guerra.
“É
incrível como A batalha de Argel é atual”, ela disse, com
uma voz seca. Ou seria uma voz de dry martíni? Isso porque, se bem a
conheço, Vanda adora drinques. Ela viu em casa o filme de Gillo
Pontecorvo, e depois viu um documentário sobre as bombas atômicas
que destruíram Hiroshima e Nagasaki.
Vanda
não conhece Guerra. Melhor assim: eu perderia um desses amigos se
eles se encontrassem. Talvez perdesse ambos: o esperançoso e a
cética.
Tomei
coragem e telefonei para a minha dentista. Não a encontrei em casa,
e sim no consultório.
“Me
liga daqui a meia hora”, ela disse, pensando que eu estava com dor
de dente. Liguei e conversei brevemente com uma dentista exausta:
quatro pacientes estavam desesperados de tanta dor. O primeiro
tratamento de canal havia começado às dez da manhã do dia
anterior.
“Foi
o Réveillon dos canais inflamados”, ela disse. “Ontem trabalhei
o dia todo. Você também está sentindo dor?”
“Não”,
respondi. “Só queria saber o que você tinha feito no primeiro dia
do ano.”
“Então
já sabe. Feliz 2010.”
Desligou
de um modo precipitado. Imagino que tenha voltado a tratar o
penúltimo canal da tarde.
Mais
sereno, talvez mais melancólico, foi o dia de um amigo artista.
“Ontem
acordei às sete e comecei a desenhar o rosto de minha mãe”, ele
disse. “Senti saudades dela e fiz várias aquarelas de um rosto que
não vejo há mais de quatro anos. Desenhei de memória, sem olhar
para fotografias.”
Lembrei
de minha mãe: foi o primeiro Ano-Novo em que acordei órfão. Sem
talento para a arte, não desenhei nada, e por algum tempo recordei
um rosto que não vejo há bastante tempo.
Telefonei
para Virginia, com quem não falava havia meses.
“Você
me ligou no dia certo”, ela disse, com uma voz animada.
“Por
quê?”
“Ontem
encontrei por acaso meu primeiro namorado. Ele estava casado com uma
mulher… Bom, não interessa. O fato é que nós dois estávamos
casados e nos separamos no ano retrasado. Adivinha…”
“Nem
é preciso”, eu disse. “Imagino que ontem vocês nem saíram de
casa.”
“Não
saímos da cama. Ainda estamos deitados.”
Virginia
foi a única que me fez uma pergunta indiscreta:
“E
você, o que fez hoje?”
“Passei
o dia telefonando aos amigos para saber o que eles tinham feito
ontem.”
“Por
que você fez isso?”
“Porque
precisava de assunto para escrever uma crônica.”
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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