A
primeira vez que eu vi alguém na rua comer milho cozido, confesso
que me espantei. A segunda, não estranhei tanto. A terceira, tive
tentação de pedir-lhe:
— Desculpe,
moça. Posso provar um tiquinho?
Porque
era moça, por sinal bem-apanhada. Não pedi, infelizmente. Ou
felizmente, porque ela não só me recusaria o pedido como poderia
mesmo estranhá-lo, achando-me atrevidão. Refleti logo como havia
entre nós a distância infinita de algumas gerações, pois ela
fazia o que eu gostaria de fazer e não tinha coragem, nem mesmo
nunca pensara nisso: saborear na rua uma tentadora espiga de milho
verde.
E
daí, quem sabe se toparia? Garota moderna, desinibida, comendo
quando lhe apetecia, natural que compreendesse o desejo de alguém,
despertado pela visão do milho bom de comer. Se não topasse, a
distância entre nós não seria tão grande assim: apenas moça
preconceituosa, incapaz de compreender que minha intenção era
simplesmente provar do milho, e não arranjar pretexto para
aproximação, com fins obscuros e suspeitos.
Embaraçado,
limitei-me a olhá-la com o rabo do olho, pois íamos no mesmo
frescão, ela ao meu lado, e era impossível não tomar conhecimento
daquele pausado e delicado comer um milho que vinha de antiquíssimas
fazendas da minha lembrança… um milho tão recuado, tão perdido
em brumas do século, sem mais nem menos viajando comigo naquele
ônibus, trincado pelos dentes da moça, que o comia com muita
desenvoltura e ao mesmo tempo com muita classe.
Ela,
é claro, nem se dignava tomar conhecimento de mim, com essa
faculdade admirável que têm as mulheres de estarem ausentes na mais
indubitável presença. E dava uma mordidinha e parava e recomeçava,
atenta ao ritmo e às boas maneiras. Nada mais natural, mais
civilizado, sem gula ostensiva, sem provocação aos últimos
defensores da teoria de que comer num coletivo é falta grosseira de
“berço”.
A
espiga consumia-se. Eu sempre com vontade de provar, e mudo e quedo
na minha inibição. Não tinha olhos de cão pedinte, não ousaria
tanto, mas comecei a duvidar da inteligência e do coração da moça.
Então ela não via que a seu lado estava um senhor carente e
desejante de comer daquele milho, e que lhe custaria renunciar a uns
poucos grãos, para satisfazer tão humilde carência? Eu era um
desconhecido, sim, mas o desconhecido deixa de sê-lo a um rápido
olhar de benevolência e duas ou três palavras reveladoras.
Só
em Botafogo me ocorreu que podia repugnar-lhe a ideia de a espiga
passar por duas bocas. Em Copacabana, perto de dois terços de espiga
tinham-se desnudado; no Leblon terminaria a refeição, pelo
esgotamento da peça. Não pude deixar de admirar a competência da
moça, que nem se atrasava nem se afobava. Parecia até que
cronometrara o ato de comer pela duração da viagem de ônibus. Se
morasse em São Conrado, destruiria duas espigas? O fato é que
degustava calma e delicadamente o glúten, o amido, as proteínas,
ou, para falar a verdade, o sabor da mistura, sem identificação de
elementos. O milho deixava-se papar, talvez agradecendo a delicadeza
com que era papado. Escapara do carrinho do vendedor ambulante para
cair nos dentes de uma bela moça egoísta que nem sequer se lembrava
de que pertinho dela um senhor de origens rurais passara a ter
subitamente imperiosa necessidade de comer milho verde, milho assado,
milho cozido, qualquer variedade ou modalidade de milho, e elas são
milhares…
Ah,
por que não fiz o que era tão fácil de fazer, passar na carrocinha
e comprar a minha espiga, mostrar à moça que também eu apreciava
essa comidinha despretensiosa e amável? Mas como, se eu não tinha,
minutos antes, a menor tentação de comer milho, e só a sentira ao
ver a moça? Seria autêntica essa tentação, ou eu me comportava
como reles imitador de gestos alheios, sem correspondência com a
massa dos meus gestos habituais, normalmente programados? Na dúvida,
arrisquei-me a olhá-la sem cerimônia, direto, quase provocador. Não
deu sinal de perceber minha indiscrição. Comendo estava, comendo
continuou, na mesma toada. E o milho acabando. E eu sentindo que a
essa altura já não adiantava pedir nada à moça. Na melhor
hipótese me estenderia o sabugo despojado, com um ou dois grãos de
sobejo, irônicos. E já ia passando minha vontade de comer aquele
milho daquela espiga, Deus (ou o Diabo) sabe lá por quê. Em vão
procurara me iludir, pensando num milho anônimo, genérico,
universal. Se a moça retirasse da bolsa outra espiga e a oferecesse
à minha gula, não me apeteceria. Aquela é que despertara em mim o
desejo manducativo, ligado a fortes e escondidas subjacências
temporais. A moça desceu antes de mim, depois de embrulhar
cuidadosamente o sabugo em papel fino e guardá-lo na bolsa.
Continuei, já agora de estômago saciado. Eu comera toda a espiga de
milho.
Carlos
Drummond de Andrade, in Boca de luar
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