Ano
de 1958. Já no fim da noite estalinista, chega às livrarias de
Moscou a primeira antologia poética de Anna Akhmátova, uma das mais
notáveis poetas da Rússia. Anna tem quase 70 anos. Sua poesia
solar, em que o silêncio importa tanto quanto a palavra, seduz os
leitores russos. Três anos depois, os 50 mil exemplares da segunda
edição são vendidos em poucas horas.
Durante
três décadas, o regime de Joseph Stalin proibiu as edições da
poesia de Anna (1889-1966). Em 1921, seu primeiro marido, Nikolas
Goumilev, é fuzilado. Em 1923, seus livros são banidos. Seu único
filho, Lev, é perseguido e deportado. Sua poesia carrega, desde a
origem, o veneno do terror.
Meio
século se passa. Estamos no Recife. Uma foto esmaecida de Anna
Akhmátova aparece na capa de um livro de Fernando Monteiro. A imagem
é o primeiro golpe desferido por Vi uma foto de Anna Akhmátova
(Fundação de Cultura Cidade do Recife). Os olhos distorcidos pela
penúria, uma expressão em que o desespero se mistura com a bondade,
as franjas antigas a decorar um rosto sensual e morto.
Escreve
Fernando, sem nos poupar de nada: “Vi essa mulher, com meus olhos
cegos./ Vi sua vontade de morrer”. O poeta assume, desde logo, sua
cegueira – limitação que é, também, potência. Através dos
versos (dos olhos foscos de Anna), ele contempla o crepúsculo de um
mundo. Não apenas a censura e a perseguição política, mas uma dor
muito maior, que só a poesia pode ver.
Os
versos de Anna desmentem a rispidez da burocracia de Estado. Neles,
as palavras são maleáveis e se deixam revirar. Aliás: é para isso
que estão ali. O terror não é só o pavor que os poetas
experimentam durante o império de Stalin. Terror – o poema hoje me
permite ler – é, também, espanto. Os agentes que perseguiram
Anna, os mesmos que fizeram do terror político um instrumento de
dominação, sofreram de outro tipo, mais sutil e fértil de terror
(estupor): o da beleza. Por isso amordaçaram Anna Akhmátova.
No
poema de Fernando, beleza e espanto se igualam. Versos que são
também “a receita para enlouquecer um poema”. Todo grande poema,
na medida em que assassina a poesia que o precede, se torna, sempre,
um crime. Poema que leio com dificuldades, porque me dói, mas que
também me desperta. Nele, o sofrimento vitaliza o presente.
A
cada verso, as imagens explodem. Leio, penso e anoto – o livro, em
pouco tempo, está imprestável. Mas é assim: ler é lutar com a
escrita. Não é fácil duelar com um poeta hábil e de peito nu, um
poeta que não se esquiva da dor. A fotografia de Anna Akhmátova
chega às mãos de Fernando Monteiro durante um segundo crepúsculo:
o da escrita. E escrever, para ele, é resistir.
Também
em nosso mundo pragmático e “de resultados”– tanto quanto no
mundo burocrático e “de ordens” de Josef Stalin – Anna
Akhmátova se torna distante e irreal. Nem chega a ser uma mulher, é
só um vulto. Vi uma foto de Anna Akhmátova ultrapassa os
acontecimentos dessa ou daquela noite. Fernando escreve naquele ponto
em que a poesia, ao recolocar em cena o que não queremos ver,
desperta, sim – a palavra é essa –, outro tipo de terror.
Acostumados com as facilidades do virtual e da pronta-entrega, nem
sempre suportamos.
Nas
circunstâncias dolorosas do stalinismo, a poesia custou a Anna
Akhmátova um alto preço. Não lutou só contra um regime de força.
Em outra frente, combateu os vanguardistas que, manejando novas
algemas, aprisionaram a literatura em manifestos, obrigações,
dogmas. Contra a palavra implacável e estreita, Anna defendeu o
frescor da palavra plena. A palavra insubstituível que, em cada
poeta, tem um rosto.
A
tristeza é o pano de fundo, o contraste necessário contra o qual o
poema se impõe. É preciso sustentá-la. Escreve Fernando: “Você
pensa, então, que não está só – mas está”. Todo leitor está
sozinho. Assim é a foto de Anna: bela, justamente porque
insuportável. Carregada de segredos, porque direta e simples. Uma
fotografia que me leva para além da imagem; e que (como um poema)
aumenta minha solidão.
Corajoso,
Fernando Monteiro se assume como um poeta “que se desgoverna”.
Está cansado dos pedidos de que “se acalme”, “não diga isso”,
“tenha cuidado”, “meça as palavras”. A poesia é o mar da
intranquilidade. Nela tocamos nas piores coisas porque a beleza
sempre nos salva. Zona de perigo, em que as precauções são
inúteis. Terreno de liberdade no qual a escrita não se submete a
medidas e não se amedronta.
Assim
é o longo poema de Fernando: irregular (mas, por isso, magnífico);
doloroso (e, por isso, comovente). Quanto a Anna, é só uma mulher
que olha para a morte. Está em seu rosto: “Tudo tão dramático e
tão breve que punge”. Dor que enlouquece, imitando a história do
professor de violino que, depois da prisão da mulher, perde o juízo
e afunda em um mundo parecido com “o crepúsculo indeciso de um
quadro de K.A. Somov”. Sim: enlouquecer é o mesmo que se perder no
interior de uma tela. Ou de um poema.
A
foto de Anna Akhmátova surge no Recife. Mas podia estar em um bazar
de Nova York. A lógica do terror, mesmo carregada de novos
conteúdos, sobrevive. Terror que assim se define: “Não escolher
as vítimas,/ não se compadecer delas,/ não poupá-las, nem
deixá-las fugir”. Não se trata dessa ou daquela bandeira, desse
ou daquele dogma. Há uma parede de granito contra a qual os mortos
são derrubados. Contra ela a beleza se choca.
Também
Fernando – ao contrário de Ivan Turguêniev, o primeiro escritor
russo a conquistar a Europa – recusa “a língua elegante do
Ocidente”. Aproxima-se, mais, de Fiodor Dostoiévski, um escritor
em descompasso com o mundo, sempre empurrado para a sarjeta. Esse é
o espanto (terror) que a poesia causa: ela nos escava e nos expõe;
em um mundo de superfícies, brilhos e padrões, isso se parece com
um crime.
Escrita
com sangue, a poesia de Fernando Monteiro (como a de Ana Akhmátova)
imita a Natureza, que “é sem justiça e sem perdão,/ acende-se
nos vulcões e nos corações”. Natureza que, se soubermos olhar,
expõe nosso interior. Escreve Fernando: “Vi uma foto de Anna
Akhmátova/ que me permitiu ver a alma na carne”.
José
Castello,
in Sábados inquietos
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